Washington Novaes
O Estado de S.Paulo, 08 de outubro de 2010
É quase inacreditável que Brasília esteja hoje na mesma situação em que o autor destas linhas a encontrou em 1992, ao assumir a Secretaria de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia, à qual seria incorporada, meses depois, a área dos resíduos. A cidade só contava com uma usina, que reciclava entre 20% e 30% do lixo e por cuja administração o governo distrital pagava – embora fornecesse todos os empregados, água, energia e transporte e houvesse investido sozinho no projeto físico – uma fortuna a uma empresa privada, que ali colocava apenas meia dúzia de técnicos e que seu contrato vencido havia anos, com prorrogações mensais irregulares. Todo o restante do lixo era levado para um lixão na chamada Via Estrutural, onde moravam mais de mil famílias que viviam da cata de materiais.
O plano diretor para a área, que foi então formulado, previa: 1) Um aterro adequado na área rural da cidade satélite do Gama; 2) a implantação, em área próxima, de uma usina de reciclagem, a ser operada por uma cooperativa dos catadores que moravam no lixão; 3) a uns 500 metros da usina, um conjunto habitacional para essas famílias; 4) o fechamento do lixão; 5) criação de quatro áreas para deposição de entulhos da construção; compra, pelos geradores de entulhos, de uma usina móvel de reciclagem que se deslocasse entre as quatro e, reciclando os resíduos, gerasse brita, areia e outros materiais; os materiais reciclados seriam metade para as empresas, metade para projetos de casas populares; 6) a retomada, pelo governo, da usina de reciclagem já existente.
Com exceção do último item, nada conseguiu ir em frente (e a usina ainda foi devolvida paralisada e sucateada). Primeiro, rebelaram-se agricultores que achavam que o aterro “contaminaria” suas plantações – embora laudos científicos mostrassem o contrário. Depois, uniram-se da extrema esquerda à extrema direita no Gama, com o argumento de que o DF “exportaria” para lá seu lixo e desvalorizaria a cidade. Finalmente, a própria empresa encarregada do estudo de impacto ambiental do aterro, da usina e do conjunto habitacional vetou toda essa parte do plano diretor, com a alegação de que não se poderia colocar pessoas morando a 500 metros da usina, “segregadas”, pois “a filha do catador só poderia namorar o filho de outro catador” – como se isso não fosse em Brasília, uma cidade repleta de áreas restritas a certas categorias profissionais e como se os catadores não morassem dentro de um lixão. O fato é que, com a saída do autor destas linhas, no final de 1992, o projeto morreu. E até aqui a situação só se agravou em quase 19 anos.
Agora, cresce na capital o movimento contra o projeto de incineração, que, corretamente, alega: a incineração deve ser a última solução, só adotada se não forem possíveis a redução do lixo, a reutilização de materiais, a reciclagem. Além do mais, é solução muito cara, desperdiçadora de materiais (no lixo recolhido, chega até a 90% a porcentagem de materiais reutilizáveis ou recicláveis) e perigosa, por causa das emissões danosas à saúde humana, a começar por dioxinas e furanos, na queima de materiais orgânicos (que no Brasil são mais de 50% do total), além da liberação de metais pesados e outros poluentes. E também é um processo irreversível, que exigirá sempre mais lixo, em lugar de contribuir para sua redução (na Europa, que não tem onde implantar aterros, novas usinas de incineração exigem contratos de até 40 anos).
O caminho da incineração seria mais difícil se o Senado não tivesse suprimido do projeto da Política Nacional de Resíduos Sólidos – e sem protesto ou veto do Executivo – o dispositivo que não permitia a queima de resíduos a não ser quando esgotadas as opções de reciclagem. Mas suprimiu e o Executivo concordou. Abriu-se a porteira e agora a boiada das incineradoras nas capitais vem em passo acelerado. No Rio de Janeiro, a própria universidade federal prepara projeto para parte das 9 mil toneladas diárias de resíduos geradas. No Recife pretende-se construir uma usina para 1.350 toneladas diárias, ao custo de R$ 308 milhões para a implantação e concessão por 20 anos, cobrando quase R$ 30 por tonelada (fora os custos da coleta e transporte). São Paulo também discute a possibilidade de um projeto dessa natureza.
E assim vamos, sob os pretextos de que custa muito caro instalar aterros e se pode gerar energia na queima. Com essas lógicas, talvez chegue o dia em que se venha a incinerar perto de todas as 230 mil toneladas diárias coletadas no País – afinal, os espaços urbanos se encurtam e encarecem.
No mundo, a geração de lixo anda pela casa dos 4 milhões de toneladas diárias nas cidades, mais de um quilo por pessoa. Um enorme desperdício de materiais, num mundo carente deles. Estudo recente mostrou (New Scientist, 14/8) que nos EUA se desperdiça de um quarto a um terço dos alimentos produzidos e que estes, ao longo de todo o processo, consomem uns 15% da energia total no país (que, com 5% da população mundial, consome 20% da energia global). Cada família desperdiça US$ 600 anuais em alimentos não consumidos.
É por esses caminhos que tudo vai se tornando inviável. Mas quem reverterá?
JORNALISTA
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