Por Raul Silva Telles do Valle
Após oito meses de algum mistério, finalmente o deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP) apresentou à sociedade, semana passada, sua proposta de modificação no Código Florestal brasileiro. Foram necessárias duas reuniões da comissão especial, da qual ele é relator, para que o deputado concluísse a leitura quase que na íntegra – pois, autorizado pelos entediados deputados presentes, pulou algumas partes – do relatório de 270 páginas, que ele mesmo qualificou como enfadonho.
Quem se deu o trabalho de botar sentido no imenso trololó, no entanto, chega rapidamente a duas conclusões:
:: o relatório, apesar de erudito, parte de vários pressupostos equivocados – alguns factuais, o que é grave, e, outros, ideológicos, o que é normal numa democracia;
:: e, pior, é contraditório com o voto e com o substitutivo apresentados.
Desconhecimento histórico, anistia atual
O relatório começa dizendo que o Código Florestal de 1965 não é ruim. Para Aldo, “os problemas não devem ser buscados nos seus princípios, mas sim nas absurdas alterações que sofreu em anos recentes”, as quais teriam, “do dia para a noite”, colocado à margem da lei um grande número de atividades produtivas, como o “café, maçã e uva em encostas e topos de morros em Minas Gerais, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul”.
Quem conhece um pouco da história da legislação sabe que deputado está enganado. Talvez tenha sido ludibriado pelos seus novos amigos. Afinal esses pontos do relatório foram integralmente incorporados do discurso ruralista. Mas a quais alterações estará ele se referindo? Pois desde 1934 é proibido ao proprietário derrubar as florestas que tenham como função “evitar a erosão das terras pela ação dos agentes naturais”, o que o código de 1965 deixou claro que eram as encostas e os topos de morro.
Portanto, no mínimo há 45 anos é proibido cultivar nessas áreas, isso se houvesse dúvidas de que zonas de alta inclinação são justamente as mais suscetíveis à erosão pelos agentes naturais.
Deve estar se referindo às tais ocupações “históricas”, feitas pelos colonos europeus do início do século XX nas regiões acidentadas do sul do país, às quais tanto se refere o ex-ministro da Agricultura e atual deputado Reinhold Stephanes (PMDB/PR). Mas, então, por que no projeto apresentado por Aldo são considerados “consolidados”, para fins de anistia, os desmatamentos ilegais feitos até julho de 2008?
Nem mesmo os projetos apresentados pelos ruralistas “puro sangue” tiveram a coragem de propor a anistia para ilegalidades cometidas há tão pouco tempo, quando não havia qualquer sombra de dúvida que desmatar encostas íngremes, além de um atentado ao bom senso, é um atentado à lei.
Ademais, as modificações sofridas pelo Código Florestal ao longo dos últimos anos além de não serem tantas, não o desfiguraram, como quer fazer crer o relator. Talvez as alterações mais profundas tenham sido as realizadas em 1986, quando, em função da grande enchente ocorrida alguns anos antes no Vale do Itajaí, o Congresso Nacional aprovou o aumento do tamanho das faixas de mata ciliar (de 5 para 30 metros) que deveriam ser protegidas, sobretudo para os rios menores, como forma de evitar tantos prejuízos materiais e humanos.
Outra grande modificação foi feita em 1996, com aumento da RL na Amazônia de 50% para 80%. Se estivéssemos falando de ocupações feitas antes dessas épocas nesses locais, seria razoável pensar em regras diferentes. Não necessariamente anistia, pois enchentes não pegam apenas os que ocuparam “ilegalmente”, mas regras de apoio ao cumprimento da lei, mesmo que fosse por via de compensação. Mas o projeto trilha o caminho mais fácil, do ponto de vista político, e, simplesmente, permite a anistia tão desejada pelos ruralistas.
Todas as demais alterações realizadas, quase todas por meio da MP 2166, foram no sentido de fazer valer alguns dos dispositivos que já existiam na lei – como a que mandou averbar a reserva legal, para impedir que fosse fracionada ad infinitum – ou, então, para facilitar a aplicação da lei. Esse é o caso, por exemplo, da regra que permite a compensação de reserva legal ou a que aceita que agricultores familiares possam computar maciços de frutíferas e exóticas como parte de sua RL. Podem não ter sido suficientes, como a experiência vem mostrando, mas nem de longe tornaram a lei “inaplicável”.
Reserva Legal é importante, mas não precisa existir
Inaplicável ficará a lei se o projeto Aldo for aprovado. Isso porque, muito sorrateiramente, ele abre diversas brechas para que ela seja legalmente descumprida, ao mesmo tempo que, apesar das muitas críticas, nada propõe para que ela seja mais eficaz do que foi até hoje.
Embora diga no relatório que “decidiu” manter a RL, e reprise a possível inutilidade ecológica de se manter milhares de minúsculas ilhas de florestas, o deputado propõe uma nova regra que, na prática, diminui a RL em todo o país, tanto para desmatamentos passados como para os futuros.
Em sua proposta os imóveis de até quatro módulos fiscais – que na Amazônia pode significar mais de 400 hectares – não precisam ter mais RL. Os que hoje têm, poderiam desmatá-las. Frise-se: não se trata de um suposto benefício ao agricultor familiar, como dito no relatório, mas uma regra extensível a toda e qualquer área com até quatro módulos, independentemente da condição econômica e social do proprietário.
O que vai acontecer com essa regra? Simples: fazendas com mais de quatro módulos serão artificialmente divididas em diversas matrículas, de forma que cada uma delas seja isenta da reserva. Na Amazônia, muitas fazendas de 1000 hectares – algo entre 10 e 15 módulos em grande parte da região – serão divididas em duas ou três matrículas, ficando com áreas mínimas de reserva ou mesmo sem nenhuma. E isso não é mera hipótese.
Hoje no Mato Grosso – estado que, apesar de todos os problemas, é reconhecido como o que tem o sistema mais avançado de licenciamento rural - as RLs já são averbadas por matrículas, e não pela área total do imóvel[1]. Hoje isso não é um problema, pois em todas as matrículas tem que se garantir a RL, mas com a nova regra haverá uma avenida para fraudes generalizadas, pois não há como o poder público fazer esse controle, ou, se há, não foi dito pelo relator como fazê-lo.
Mas não é só isso. Para todos os demais imóveis ela será calculada apenas com base na área do imóvel que superar os quatro módulos. Assim, um imóvel com 10 módulos em Goiás terá uma RL de 20% sobre seis módulos, e não mais sobre toda a área do imóvel. Isso significa que todas as áreas de reserva legal do país diminuirão, permitindo-se, pelo projeto, que essas áreas “a mais” sejam inclusive legalmente derrubadas. As áreas de reserva, que já são, em sua maioria, pequenas, ficarão minúsculas.
Somando-se tudo, o projeto, considerando-se apenas esse ponto, é uma bomba para a política nacional de biodiversidade, que se apóia na recuperação das reservas legais como estratégia para recuperação de biomas ameaçados, e de clima, que se apóia na queda do desmatamento no cerrado e Amazônia para atingir as metas de redução de emissões de gases efeito estufa.
Dois pesos, duas medidas
Em seu relatório, Aldo propõe uma medida de bom senso: diante de regras novas, que vão fazer a lei ser aplicada de verdade, deveria haver um período de transição, no qual os proprietários e os órgãos ambientais pudessem se adaptar e se preparar para mudar a atual situação. Como lembrou o próprio relator durante a leitura de seu texto, a maior parte dos municípios nem sequer tem órgãos ambientais constituídos.
Nessa lógica, ele propõe uma troca: durante cinco anos ninguém pode ser multado ou compelido a recuperar áreas ilegalmente desmatadas, mesmo que já tenha firmado um termo de compromisso para tanto.
Nesse período os estados devem criar programas de regularização que, por sua vez, podem dispensar em definitivo a recuperação de áreas de APP e permitir a desoneração de RL – para aqueles imóveis que já não tenham sido desonerados pela própria lei – mediante doação de recursos a um fundo público ou compensação em outro estado (como fiscalizar isso se o controle será todo centrado em cada estado?). Por outro lado, nesse mesmo período ninguém pode mais desmatar. Parece justo, se não olharmos os detalhes.
O “desmatamento zero” proposto vale apenas para áreas de floresta. Como o projeto conceitua floresta como algo diferente de savana (cerrado) e outras formações florestais, fica claro que o desmatamento zero será apenas para a Amazônia, pois na Mata Atlântica já há lei específica que proíbe novos desmatamentos.
Além disso, aqueles que houverem protocolado pedidos de desmatamento permanecerão com o direito de desmatar. Portanto, na lógica do relator, o dever de recuperação é relativo, pode ser suspenso ou mesmo anulado. Mas o direito de desmatar é sagrado, e mesmo um protocolo no órgão ambiental já resguarda o proprietário do “desmatamento zero”.
Mas o pior não é isso. Pelo projeto, serão os municípios - esses mesmos sem órgão ambiental – que passarão a autorizar desmatamentos dentro ou fora de RL e APPs, já que eles são integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). Como não há qualquer condição estabelecida no projeto para que ele possa exercer sua competência, basta ter prefeito que está valendo.
Como, em grande parte das cidades do interior, os maiores fazendeiros são os próprios prefeitos ou fazem parte da turma destes, o efeito dessa medida pode ser imaginado. Em toda a Amazônia surgirão milhares de protocolos de pedidos de desmatamento feitos até 2008. No frigir dos ovos, estaremos trocando compromissos de recuperação por um desmatamento zero fictício.
Em resumo
A proposta de Aldo Rebelo, embora diga que a lei é velha, não avança em nada de novo que não seja anistias e menos proteção. Na leitura de seu relatório ele mesmo observou que, naquilo que realmente importa, as medidas para fazer a lei ser bem aplicada (incentivos econômicos), seu projeto “ficou apenas na intenção”, pois não sabe de onde tirar recursos num país “pobre”, onde falta dinheiro para atividades essenciais como saúde e educação.
Na parte concreta, sua proposta é um retrocesso imenso na legislação florestal brasileira. Embora diga que beneficia os pequenos, anistia os grandes. Embora afirme que a lei é boa, a desfigura por completo. Embora fale sobre a importância das florestas, permite o aumento do desmatamento e o fim da recuperação.
É uma pena que o relator não tenha compreendido que muitas das riquezas que geramos dependem da manutenção de florestas e dos serviços ambientais que elas prestam. Se tivesse internalizado esse fato, seguramente faria uma proposta bastante diferente, e não veria a conservação e recuperação de florestas apenas como custos, mas como investimento.
No entanto, partiu do suposto de que não há desenvolvimento sem subjugar a natureza, e que a conservação é um luxo inadequado a países “pobres”. Não entendeu nada.
17/6/2010
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