Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

Americanismo e trabalho >>> CEFET/MG

José Geraldo Pedrosa
RESUMO

Este artigo situa-se no âmbito de um programa de pesquisas, ainda embrionário, que focaliza as relações entre americanismo, trabalho e educação. A meta do artigo é refletir sobre as diferenças culturais entre a Europa e o novo mundo, sobre o significado do americanismo enquanto ciclo civilizatório, sobre o espírito americano e sobre o modo como o trabalho está inserido nesse modus vivendi. A pesquisa que deu origem ao artigo focalizou textos de quatro autores europeus: Alexis de Tocqueville (1805-1859), Max Weber (1864-1920), Antonio Gramsci (1891-1937) e Theodor Adorno (1903-1969). De modo particular, a abordagem é referente à relação entre americanismo e trabalho ou ao lugar do trabalho no americanismo.

Para isso a abordagem prioriza dois entre os quatro autores europeus: Tocqueville e Gramsci. De Tocqueville a obra selecionada é “A Democracia na América”, escrita na década de 1830. De Gramsci a referência básica é o “Caderno 22: Americanismo e fordismo”, de 1934. A parte intermediária do artigo tem duas partes. No primeira aparecem as idéias de Tocqueville, na segunda as de Gramsci. Não é objetivo a realização de comparações entre os autores, nem no sentido das diferenças, nem no sentido de semelhanças. Entretanto, em um ou outro momento são sugeridos distanciamentos ou aproximações entre as duas abordagens separadas por um século.

Nas considerações finais destaca-se o modo como se expressa o valor do trabalho no espírito americano: não é um valor-em-si, mas valor-fora-de-si. Isso equivale à mercantilização do trabalho, processo em que a atividade e as forças produtivas perdem o vínculo com as necessidades humanas para subordinarem-se à lógica do lucro. Isso leva ao extremo da superação do trabalhador pelo consumidor, que se torna mais importante para o mercado no contexto em que o progresso da técnica faz a oferta de produtos ser maior que a demanda solvente.

Currículum Vitae (resumé)
José Geraldo Pedrosa. Graduação: Ciências Sociais (UEMG); Mestrado: Educação
(FAE/UFMG); Doutorado: Educação: História, Política, Sociedade (PUC/SP); Pós-doutorado
(IGC/UFMG). Professor-pesquisador no Programa de Pós-graduação em Educação Tecnológica do CEFET/MG.

Introdução e algumas antecipações

Este artigo é oriundo de uma pesquisa lida que com problemas, hipóteses e objetivos teóricos, assim como o seu objeto é bibliográfico. O intuito é estabelecer uma rede conceitual capaz de fomentar empirias acerca das relações entre cultura e educação, com ênfase na educação profissional e tecnológica. Sua referência mais geral é um acontecimento que ocorre em meados do século XX, cenário a Segunda Grande Guerra, que é marco de um novo ciclo civilizatório: é a culminância do declínio do europeísmo e da expressão e expansão do americanismo. Emblemáticos nessa virada civilizatória são duas situações.

A primeira é a recaída da civilização européia num estado de neobarbarismo (Horkheimer e Adorno, 1985): a ascensão do totalitarismo nazi-facista e a autodestruição pela guerra. A segunda situação é a criação do Fundo Monetário Internacional-FMI, o Banco Mundial e o GATT/Acordo Geral de Tarifas e Comércio, que, posteriormente, se transformaria na Câmara do Comércio Internacional. Estas são as três instituições mais potentes do capitalismo globalizado e foram (e ainda são) as alavancas para o estabelecimento de novas relações internacionais e para um novo ciclo de acumulação ampliada do capital.

A hipótese mais geral é que esse acontecimento – o declínio da Europa e a ascensão dos E.U.A - caracteriza uma virada civilizatória e apresenta desdobramentos diversos. Há desdobramentos econômicos, no sentido de que o fordismo passa a ser a referência para a reorganização das economias nacionais e suas inserções na lógica da grande indústria e da massificação do consumo. A nova economia possibilita ao capitalismo seu maior ciclo de expansão e de integração da sociedade à lógica da produção e do consumo. Há desdobramentos políticos, tanto no tocante às relações internacionais – a Guerra Fria – quanto à definição do Estado, cuja relação será muito mais com o mercado do que com a sociedade: é a mercantilização da política. Há desdobramentos culturais decorrentes da industrialização da cultura (Horkheimer e Adorno, 1985) e do estabelecimento de uma relação cultural assimétrica dos EUA com os demais países (Jameson, 2001). Nenhum país jamais teve tamanha capacidade de se impor culturalmente e de influenciar os estilos de vida locais. Há também desdobramentos sociais no sentido da generalização do consumismo (Marcuse, 1982) e, com ele, do trabalho abstrato.

Com isso há uma legitimação da ideologia da produtividade. Mas essa virada civilizatória tem desdobramentos mais pontuais. Um deles é referente ao conhecimento, isso que decorre não apenas da afirmação do pragmatismo e da mercantilização do saber (Lyotard, 1986), mas da expansão quantitativa e geográfica da universidade (Gulbenkian, 1996). Outro traço marcante desse novo processo civilizatório é a consolidação irracional disso que Henry Lefebvre (2001) chamou de sistema automóvel. No novo mundo e seu campo hegemônico o automóvel torna-se uma peça estratégica no estilo de vida, algo que se situa muito além de um instrumento funcional: é um símbolo de status e de poder. Há também a exacerbação do individualismo e de sua manifestação hedonista e narcísea. O que emerge a partir da segunda metade do século XX é a sociedade do espetáculo (Guy Debord, (1997). Nas palavras de Gramsci (2001), uma civilização que requer e que forma um novo homem, como novos valores, novos hábitos e uma nova conformação psicofísica.

A pesquisa que deu origem ao presente artigo focaliza textos de quatro autores europeus: dois com obras do século XIX ou início do XX e dois com obras elaboradas no século XX. Esses autores são Alexis de Tocqueville (1805-1859), Max Weber (1864-1920), Antonio Gramsci (1891-1937) e Theodor Adorno (1903-1969). De modo particular, a abordagem aqui pretendida é referente à relação entre americanismo e trabalho ou ao lugar do trabalho no americanismo. Para isso a abordagem vai priorizar obras de dois destes quatro autores europeus: Tocqueville e Gramsci. De Tocqueville a obra selecionada é “A Democracia na América”, escrita na década de 1830. De Gramsci a referência básica é o “Caderno 22: Americanismo e fordismo”, de 1934.

A meta é refletir, com base nos dois autores, sobre as diferenças culturais entre o velho e o novo mundo, sobre o significado do americanismo enquanto novo ciclo civilizatório, o espírito americano e o modo como o trabalho nele está inserido. A parte intermediária do artigo está organizada em dois momentos. No primeiro são apresentadas as idéias de Tocqueville, no segundo as de Gramsci. É importante salientar também que não é objetivo da abordagem a realização de comparações entre os dois autores, nem no sentido das diferenças, nem no sentido de semelhanças. Entretanto, ainda que esta não seja a meta, em um ou outro momento são sugeridos distanciamentos ou aproximações entre as duas abordagens separadas por um século. Mas a meta é pensar o americanismo e seus traços distintivos e é isso que é buscado nos dois autores.

TOCQUEVILLE, O AMERICANISMO E O TRABALHO

Foi no ano de 1835 que Tocqueville apresentou ao público francês a primeira parte de “A democracia na América” (2005). A obra era resultado de experiência realizada em 1831 e 1832: uma viagem de estudos aos E.U.A.. O objetivo inicial seria uma pesquisa sobre o sistema prisional dos E.U.A., mas acabou se tranformando num estudo sobre a formação social e política. Parece paradoxal, mas é fato: o mesmo país que era referência para a liberdade individual, era também modelo para a construção de penitenciárias. O tema das prisões estava em evidência na Europa. Era decorrente da emergência das quantidades humanas. A industrialização, a urbanização e a concentração demográfica exigiam uma economia da pena (Benthan, 2.000). Mas o motivo da viagem de Tocqueville aos E.U.A. era, certamente, um tremendo mal estar que esse jovem aristocrata liberal sentia na França pós revolucionária.

Eram anos de instabilidade econômica e política, tempo de disputas sangrentas pelo controle do Estado, tempo de terror na órbita do Estado. Parece ser nestas circunstâncias que a arrogante e preconceituosa Europa direciona seu olhar para os lugares classificados por ela como periféricos a ela: isso aconteceu tanto na primeira metade do século XIX quanto no mesmo período do século XX. Tocqueville, estava atento a todos esses problemas. Era oriundo de família que teve experiência com o terrorismo francês pós-revolucionário e assistia na velha Europa aristocrática a entrada em cena do povo. Esse era o motivo de sua preocupação e de sua inspiração.

Era preciso instruir a democracia, buscar a institucionalidade política compatível com a superação da hierarquia pela igualdade civil. A instabilidade e o terror político o faziam pensar nos obstáculos culturais, legais e institucionais ou na (in)capacidade da Europa para viabilizar o seu futuro. Havia um receio quanto ao futuro da Europa e do europeísmo. Se os costumes, os sentimentos e as leis não fossem reorientados, tensões sociais e revoluções poderiam ser constantes.

Tocqueville fez um exercício de alteridade: lançou um olhar descentrado sobre o novo mundo. A cada nova descoberta de virtudes nos costumes, nas leis e os sentimentos, identificava os limites da Europa revolucionária, prenhe de futuro e, ao mesmo tempo, enroscada em seu passado. No século XIX, a ascensão dos E.U.A. aos olhos do mundo não representava apenas a afirmação de novos sujeitos no além-mar, mas a entrada em cena de nova referência civilizatória. Isso fica evidente quando o francês justifica sua viagem aos E.U.A.: “...não é apenas para satisfazer a uma curiosidade, (...) quis encontrar ali os ensinamentos que pudéssemos aproveitar.” (Tocqueville, 2005, p. 19).

Tocqueville estava convencido que a democracia era o grande desafio dos tempos modernos e que os “...americanos (...) fornecem ensinamentos úteis aos que o querem resolver.” (p. 366). Isto é reconhecer, ainda na primeira metade do século XIX, que os “americanos dos Estados Unidos já exercem uma grande
influência moral sobre todos os povos do novo mundo. É deles que parte a luz.” (p.467). Os americanos dos Estados Unidos realizavam em sua vida prática um novo tipo de iluminismo: “eles constituem o único povo religioso, esclarecido e livre.” (p. 432). As relações sociais no ambiente de igualdade e liberdade, favorecia a criação de uma nova mentalidade - o espírito americano - que contém elementos diferentes do espírito europeu. Havia nos E.U.A. um potencial de atração e de expansão: “A civilização do Norte parece (...) destinada a se tornar a medida comum com base na qual todo o resto deve se pautar um dia.” (p. 443).

Tocqueville chega a ser profético em seu encanto com o novo mundo: “Os americanos dos Estados Unidos, não obstante o que façam, tornar-se-ão um dos maiores povos do mundo. (...) A riqueza, o poder e a glória não lhes pode faltar um dia, e eles se precipitam para essa imensa fortuna como se só lhes restasse um momento para dela se apoderar” (p. 441). A linguagem só não é profética porque ela tem bases históricas. Tocqueville via esse expansionismo até mesmo no Sul escravista: “A província do Texas ainda se acha sob o domínio do México; mas logo não haverá mais mexicanos ali (...). Coisa semelhante sucede em todos os pontos em que os anglo-americanos entram em contato com as populações de outra origem.” (p. 473). Já havia no século XIX um sentido subjetivo favorável à expansão americana: o ofuscamento do eurocentrismo no Ocidente não significava o ofuscamento do etnocentrismo. O americanismo é compatível com o fortalecimento do etnocentrismo e isso já era percebido por Tocqueville: “...os anglo-americanos são separados de todos os outros povos por um sentimento, o orgulho.

(...) têm pois uma opinião elevadíssima de si mesmos e não estão longe de pensar que formam uma espécie à parte do gênero humano.” (p. 432). Trata-se de um povo que “...sabe que seu país não se parece com nenhum outro e que sua situação é nova no mundo.” (p. 465). Questão relevante a ser refletida é a de saber se o novo mundo representa a realização dos ideais europeus em terras distantes ou se é outra civilização, orientada por outras referências. O iluminista Tocqueville tem luzes para esta questão e a primeira impressão que se tem é que Tocqueville vê o americanismo como a realização do europeísmo. Há momentos de “A Democracia na América” que expressam uma idéia de continuidade entre o velho e o novo mundo. Uma delas é referente à religiosidade: “A maior parte da América inglesa foi povoada por homens que, depois de terem furtado a autoridade do papa, não se haviam submetido a nenhuma supremacia religiosa.” (p.238). Isso tem conseqüências na relação entre economia e política: “...eles levavam pois ao novo mundo um cristianismo que eu não poderia pintar melhor do que chamando-o de democrático e republicano.” (p. 338). Essa relação permite pensar no novo mundo como a realização prática do espírito protestante, que é, originariamente, europeu.

Assim, Tocqueville vê a Europa se realizar na América: a diferença seria a ausência dos velhos obstáculos e não a presença de novos referenciais. Os E.U.A.foram colonizados por um povo que assimilou o espírito da modernidade na Europa e foi barrado na Europa. Esse espírito refere-se aos ideais de igualdade e de liberdade. Seus derivados são o trabalho, o progresso, a riqueza e a mobilidade social. Mas há evidências mais profundas que sinalizam para o pólo oposto, isto é, para uma relação de invenção e não apenas de difusão cultural ou de estilo de vida. Para Tocqueville, a diferença fundamental entre a Europa e os E.U.A. era a democracia: a velha Europa era aristocrática, fechada e sem mobilidade. É da democracia que emerge uma nova sociedade, um novo homem e uma nova subjetividade. Isso permite pensar que o novo homem já era do século XIX.

Mas quais eram as origens dessa nova civilização? Quais eram suas bases? A partir de que referenciais ela estava se formando e se impondo? Do modo mais sintético, pode-se dizer que o encanto de Tocqueville era com o povo americano: seu senso de igualdade e de liberdade, seu individualismo combinado com o associativismo, sua disposição para o trabalho ou sua capacidade de articulação entre interesses comuns e privados. Mas Tocqueville se encantava também com o Estado liberal, com a leveza do Estado, isso que resultava da combinação entre centralização governamental e descentralização administrativa.

O senso de igualdade que havia nos E.U.A. significava que o Estado era de todos e para todos: sem privilégios. A política na Europa era mediada por prestígios da nobreza, por privilégios herdados e por direitos corporativos. Nisso os E.U.A. eram bem mais leves: lá não havia o peso da tradição, suas hierarquias, seus status e seus testamentos. Não havia nos E.U.A. o peso da herança: isso permitia uma relação mais evidente entre trabalho e fortuna,entre trabalho e mobilidade social. Era a esse senso de igualdade que Tocqueville atribuía a soberania das comunidades locais sobre o poder central. Nos E.U.A. a institucionalidade política e a legalidade não oscilavam ao sabor de disputas pelo poder central e era isso que garantia esse elemento importante da democracia: a estabilidade das regras.

Para Tocqueville, “A grande vantagem dos americanos é terem chegado à democracia sem terem precisado passar por revoluções democráticas e terem nascido iguais, em vez de terem se tornado.” (Tocqueville, 2004, p. 124). Isso permite a formação de outros sentimentos e costumes. Lá, os homens nunca estiveram separados por privilégios, “...nunca conheceram a relação recíproca de senhor e amo, (...) tomaram da aristocracia (...) a idéia dos direitos individuais e o gosto pelas liberdades locais; e puderam conservar uma e outro, porque não tiveram que combater a aristocracia.” (p. 367).

Nisso há equivalências entre Gramsci e Tocqueville: a diferença do novo mundo é a ausência do “passado de chumbo”, que criou condições para a emergência de outros referenciais civilizatórios ou do que aqui será chamado de espírito americano. Mas, afinal, quais são os traços definidores desse espírito americano? No texto de Tocqueville há sínteses bastante precisas na identificação desse espírito do século XIX: “O americano tomado ao acaso deve ser (...) um homem ardente em seus desejos, empreendedor, aventureiro, sobretudo inovador.” (Tocqueville, 2005, p. 465). Mas isso já era decorrência de um modo particular de esclarecimento, que não se limitava às elites, como na Europa. Nos E.U.A. o esclarecimento era democrático.

Tocqueville afirmava que lá as luzes podem ser vistas sob dois aspectos: “Se só considerar os cientistas, ficará espantado com seu pequeno número; se contar os ignorantes, o povo americano parecer-lhe-á o mais esclarecido da terra. A população inteira está situada entre os dois extremos.” (p. 355). Esse esclarecimento mediano era uma diferença decisiva entre E.U.A. e Europa. Os “...povos da Europa partiram das trevas e da barbárie para rumarem em direção à civilização e às luzes. O progresso deles foi desigual...” (p. 356). O mesmo não ocorreu nos E.U.A.: “Os anglo-americanos chegaram já civilizados à terra que sua posteridade ocupa; não precisaram aprender, bastou-lhes não esquecer (...) Nos Estados Unidos, portanto, a sociedade não tem infância; ela já nasce na idade viril.” (p. 356)

Outro traço distintivo do espírito americano é a recusa à abstração e o simultâneo gosto pela idéias gerais: tudo articulado ao utilitarismo. De acordo com Tocqueville, no novo mundo a imaginação ainda “...não se apagou, mas se consagra quase exclusivamente a conceber o útil e a representar o real.” (Tocqueville, 2004, p. 84). Nesse estado de espírito “...quase não se diz que a virtude é bela. Sustenta-se que é útil, e prova-se isso todos os dias.” (p. 148). O americano dos Estados Unidos tem pouco tempo livre, já que dedica suas horas e seus dias à perseguição da fortuna. Por força disso, não gosta de perder tempo. Essa simbiose entre ter pouco tempo livre e não gostar de perder tempo é o campo fértil para dois traços distintivos do espírito americano: o gosto pelas generalizações, o utilitarismo e o amor à fortuna: “...não conheço país em que o amor ao dinheiro ocupe maior espaço no coração do homem...” (Tocqueville, 2005, p. 60).

O espírito americano é instrumental, marcado por uma forte tendência ao “...resultado sem se deixar acorrentar ao meio...” (Tocqueville, 2004, p. 03). A rigor, trata-se de um espírito concentrado de maneira singular nas coisas materiais ou um espírito inclinado para a terra: “Apenas a religião faz, de quando em quando, olhares passageiros e distraídos erguerem-se para o céu.” (Tocqueville, 2004, p. 43). Trata-se de um espírito que “despreza (...) precauções e afronta os perigos” (Tocqueville, 2005, p. 462), um espírito audacioso e irrequieto: “...consideram ser uma indústria louvável o que denominamos amor ao lucro, e vêm certa frouxidão no que consideramos uma moderação dos desejos”. (p. 334). O espírito americano é fortemente mercantil. No novo mundo “...um homem constrói com cuidado uma morada para a velhice e vende-a enquanto assentam a cumueeira; planta um pomar e arrenda-o quando ia provar seus frutos...” (Tocqueville, 2004, p. 166). Tudo isso equivale a um movimento permanente, no mundo e na mente: “Esse pensamento enche-o de inquietude, medos e arrependimentos, e mantém sua alma numa espécie de trepidação incessante que o leva a mudar a todo instante de projetos e lugares.” (Tocqueville, 2004,p.166).

Por isso, há relação entre o amor à fortuna e a recusa à abstração: “O espírito americano (...) não é voltado para as descobertas teóricas.” (Tocqueville, 2005, p. 355). Ademais, “...só se interessam pelas aplicações cuja utilidade presente é reconhecida.” (p. 61). As idéias abstratas “...atemorizam seus espíritos acostumados com cálculos positivos e entre eles a prática é mais estimada que a teoria.” (p. 335). Nos E.U.A.,“...não há quase ninguém, nos Estados Unidos, que se dedique essencialmente à porção teórica e abstrata dos conhecimentos humanos.” (Tocqueville, 2004, p. 48). É por isso que “... não há, no mundo civilizado, país em que o povo se ocupe menos de filosofia do que nos Estados Unidos.” (p. 03).

Em um livro publicado nas últimas décadas do século XX, Lyotard (1986) referiu-se à condição da Ciência tendo como referência a substituição da busca pela verdade pela busca da eficácia. É daí que viria sua deslegitimação no cenário pós-moderno: a Ciência vincula-se prioritariamente ao mercado e à lógica do lucro. Tocqueville permite pensar que essa pragmática do lucro já era presente no espírito americano do início do século XIX e ela é decorrente do estado social no qual o espírito é “...insensivelmente impelido com uma energia sem igual para a aplicação, ou pelo menos para essa parte da teoria que é necessária
aos que aplicam.” (p. 52)

Tocqueville identifica o espírito americano voltado para os prazeres do corpo ou marcado pelo amor às fruições materiais, algo que coincide com um materialismo honesto e compatível com a religiosidade. Assim, o “amor material ao bem-estar tornou-se o gosto nacional dominante; a grande concorrente das paixões humanas vai nessa direção e tudo arrasta em seu curso.” (Tocqueville, 2004, p. 157). Por isso, outro traço que Tocqueville identifica no espírito americano é a efemeridade, talvez aquela efemeridade que Berman qualificou como capaz de “...destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos...” (Berman, 1992, p.15) ou aquela que Sennett (2001) identificou, no século XX, como capaz de corroer o caráter dos indivíduos. “Nas eras democráticas, o espírito humano (...) Imagina facilmente que nada permanece. A idéia de instabilidade o possui. ...nas eras democráticas, o que há de mais movediço, no meio de todas as coisas, é o coração do homem.” (Tocqueville, 2004, p. 231)

Texto completo em:
http://www.estudosdotrabalho.org/anais-vii-7-seminario-trabalho-ret-2010/jose_geraldo_pedrosa_americanismo_e_trabalho.pdf

Artigo enviado por Claudio Estevam Próspero >>>> prosperoclaudio@gmail.com

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