Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

COP-16: É preciso mudar o sistema e não o clima

Data: 16/12/2010

Por: Redação TN / IHU On-Line
Presente na 16º Conferência do Clima, que ocorreu em Cancún, Ivo Poletto conversou com a IHU On-Line assim que chegou ao Brasil. Ele fala sobre os bastidores da COP-16, das principais reivindicações e diz que, de certa forma, este encontro foi melhor do que o ocorrido no ano passado em Copenhague. Ivo Poletto é assessor de pastorais e movimentos sociais. Trabalhou durante os dois primeiros anos do governo Lula como assessor do Programa Fome Zero e foi o primeiro secretário-executivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Autor, entre outros, do livro Brasil, oportunidades perdidas: Meus dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005), é cientista social e educador popular.

“No evento em que se tratou da miséria, escutamos os companheiros dos vários países. Estes narraram os eventos extremos das mudanças climáticas em seus países. Eles trouxeram o testemunho sobre enchentes enormes, grandes quantidades de chuva em pouco tempo, períodos de seca intensos. São situações que causam um desastre social e da biodiversidade imenso, causando muito sofrimento. Por isso mesmo há um sentimento crescente de que temos que chegar a acordos o mais urgentemente possível”, analisou.

Confira a entrevista.
– O senhor esteve em Cancún acompanhando a COP-16 a convite de quem e com que propósito?

Ivo Poletto – Nós estávamos participando de um evento organizado por uma entidade da Igreja Católica alemã de solidariedade internacional. Ela apoia, há muito tempo, iniciativas sociais ligadas às pastorais e movimentos sociais, aqui no Brasil, da América Latina, na África, na Ásia. Junto a outras unidades de solidariedade, ela resolveu chamar algumas pessoas ligadas da América Latina para realizarmos, em Cancún, um seminário durante a COP-16. Desta forma, conseguimos, ao mesmo tempo, participar de vários espaços que existiram durante a realização da COP-16.

– Como se deu a dinâmica das conferências paralelas à COP-16?
Ivo Poletto – Pelo lado mais institucional, nós tínhamos a Conferência do Clima que é a 16ª e ela aconteceu num grande hotel de Cancún. Participaram deste evento representantes dos governos, negociadores das entidades da ONU e também representantes de ONG’s. Antes de chegar nesse espaço oficial da COP-16, havia um outro espaço localizado num grande salão de eventos. Ali que se faziam as inscrições para o encontro e também era o local onde havia material disponível de tudo quanto é iniciativa ligada ao clima, tais como: iniciativas de países, de ONG’s, de empresas, inclusive brasileiras.


Depois esse espaço contava ainda com sala para reuniões e debates promovidos por ONG’s, à maneira como que se faziam durante o Fórum Social Mundial. Então, as ONG’s se organizavam antes e previam ali debates sobre determinados temas que tinham a ver com a negociação oficial. A finalidade destes debates era evidentemente elaborar propostas e depois tentar contribuir ou influenciar o trabalho da conferência oficial. Além desses dois espaços que poderíamos considerar mais próximos do que foi o evento oficial, nós tivemos na cidade de Cancún três outros espaços organizados pela sociedade civil. O segundo e que reuniu talvez o maior número de movimentos sociais, de entidades ligadas às pastorais, ONG’s do México e de outras localidades do mundo e que se chamava Justiça Climática, era o espaço mexicano, um espaço onde ocorriam debates, reuniões de plenária, e também onde organizaram uma manifestação pública que ocorreu dia 7.

Outro espaço foi mais reunido pelos movimentos que estão articulados pela Via Campesina. E ainda uma terceira da sociedade civil que era chamado de Clima Fórum e era constituído pelas chamadas grandes ONG’s que, em geral, também tem participação nas negociações junto aos espaços oficiais da própria ONU.

– Como foi a relação entre os delegados brasileiros que foram à conferência dos movimentos sociais e os delegados da representação oficial do governo? Vocês conversavam? Há convergências?

Ivo Poletto – Fui reconhecido como parte da delegação brasileira, pois participei tanto de atividades no espaço mexicano com as ONG’s e outros movimentos, como estive presente nos dois espaços oficiais. Ainda assim, posso dizer que não trabalhei diretamente com os negociadores pelo governo brasileiro durante essa conferência.

Podemos dizer que influenciamos indiretamente o debate, principalmente pela pressão feita no dia da mobilização. No dia 7, houve uma caminhada pela cidade onde manifestamos publicamente quais eram os pontos essenciais e que como ligados a entidades, representantes da sociedade civil, achamos que era importante que fossem levados adiante pela conferência. No entanto, esse trabalho não foi feito direto nas negociações, não houve tempo para que eu pudesse dar essa contribuição.

– Na Conferência alternativa dos movimentos sociais, havia concordância entre as posições e propostas ou manifestaram-se divergências? O Greenpeace e a Via Campesina, por exemplo, pensam de forma similar? Qual é a sua percepção?

Ivo Poletto – Creio que as proposições não são assim tão diferentes, quem sabe talvez o pessoal da Via Campesina se aproxime, em termos de estratégia prática de ação, da posição do governo boliviano. Este tem uma convicção de que se não alcançarmos uma transformação profunda da sociedade mundial, que por enquanto é determinada pelos padrões produtivista e consumista da sociedade capitalista. Então o planeta continua ameaçado.

O trabalho feito no outro fórum também diz ser preciso mudar o sistema e não o clima. Parece que esse é o grito comum entre todas as entidades. Uma coisa interessante que observamos lá é que várias entidades e movimentos sociais participaram das duas manifestações. Com isso, as delegações se dividiram e estavam uma parte na manifestação da Via Campesina e outra parte nessa outra que se considerava mais unitária.

Neste sentido, eu acho que está colocado um desafio para os participantes, no sentido de se perguntar se, de fato, ali trabalhamos na perspectiva de uma maior unidade. Haja, talvez, alguma diferença maior entre algumas entidades que ainda são mais concessivas a algumas das propostas que são defendidas dentro da conferência oficial no sentido de utilizar o dinheiro, aceitar essa questão de bônus de carbono, aceitar certas mediações econômicas como se elas pudessem efetivamente ajudar a enfrentar o problema.

Nesse ponto, a maioria dos movimentos sociais e das entidades percebe que este pode ser um grande engano. Pode ser uma tentativa ainda do próprio capitalismo de negociar o desastre provocado pelo produtivismo, pelo consumismo promovido pela sociedade capitalista.

– Que reivindicações mais chamaram sua atenção? Há novidades, particularidades nesse debate que foge do que pudemos acompanhar desde o Brasil?

Ivo Poletto – Durante todos dos dias da conferência houve um clima de quase de desânimo, no sentido de perceber que no, âmbito oficial, muito provavelmente poderiam até recuar em relação aos acordos que já existiam. Havia uma pressão muito forte para abandonar até o Protocolo de Kyoto, que é a única negociação internacional que se tem e indica o caminho de obrigatoriedade dos países para se diminuir a emissão de gases que provocam o efeito estufa.

Muitos estavam sem perspectivas de saída, então todos os movimentos trabalharam juntos para que nada do que já estivesse acordado anteriormente fosse recuado e que pudéssemos apenas avançar a partir daí. Nesse sentido, continuar a pressão sobre os Estados Unidos para que assuma o Protocolo de Kyoto já é um avanço. Países como os EUA enriqueceram ao longo do processo de colonização e depois de exploração internacional através do controle do comércio e do controle da especulação internacional, das dívidas externas, ou seja, fazendo um tipo de economia que emitiu muitos gases de efeito estufa. Agora é a hora de eles assumirem a responsabilidade maior para enfrentar o problema.

Por outro lado, houve reivindicações de que mesmo os países mais empobrecidos, que foram mais explorados e que, às vezes, têm pouco a ver com as causas do aquecimento, procurassem fazer o possível para podermos diminuir o desequilíbrio em que se encontra o planeta. Reconhece-se que tem que se colocar 2ºC como máximo aceitável de aquecimento. Isso significa no máximo 1ºC, 1,2ºC a mais do que já está de aquecimento até agora.

– Houve algum testemunho que, particularmente, chamou sua atenção?
Ivo Poletto – Escutamos os delegados oficiais em alguns momentos em que nós pudemos estar na COP-16. Um deles afirmou: “nós temos que, de fato, avançar, porque o meu país está quase debaixo da água”. Este é o caso da Colômbia e da Venezuela, por exemplo.

No evento em que se tratou da miséria, escutamos os companheiros dos vários países. Estes narraram os eventos extremos das mudanças climáticas em seus países. Eles trouxeram o testemunho sobre enchentes enormes, grandes quantidades de chuva em pouco tempo, períodos de seca intensos. São situações que causam um desastre social e da biodiversidade imenso, causando muito sofrimento. Por isso, mesmo há um sentimento crescente de que temos que chegar a acordos o mais urgentemente possível.

– Na avaliação do senhor, quais são os movimentos sociais internacionais mais atentos à problemática ambiental?
Ivo Poletto – Bom, é preciso ter presente que muitas pessoas e movimentos não puderam lá estar e muitos países só conseguiram ir com uma delegação muito pequena. Isso porque os países têm que assumir a maior parte dos custos das próprias delegações e os movimentos têm que assumir os custos do deslocamento dos seus participantes.
Dos que ali se reuniram as palavras mais fortes hoje estão sendo levantadas pelos movimentos indígenas Tropa de choque, observa o manifesto de um ativista na rodovia que liga centro da cidade com o hotel onde aconteceu a COP 16 que se articulam, e aí acho que a voz forte é mais a América Latina mesmo. Junto com
os indígenas os camponeses do mundo devem ser destacados. E aí sem dúvida alguma a Via Campesina representa uma articulação mundial desses movimentos com uma voz forte e propositiva, no sentido tantos os indígenas quanto os camponeses, no sentido de dizer que se nos reconhecem, então nos apoiam. Estes movimentos são muito importantes.

Há outro conjunto de movimentos que está conseguindo lentamente ter uma articulação internacional que é o Movimento dos Atingidos por Barragens. Esses atingidos estão com uma voz cada vez mais forte e trazem como maior questionamento o seguinte: será mesmo que se precisa de toda essa energia? Será que não se deve repensar o nosso modelo de produção para ver se temos que continuar expandindo uma economia produtivista que vai depois buscar ou forçar, inclusive, um consumo em expansão crescente?

– No caso brasileiro, quem têm sido os maiores aliados da luta contra a crise climática e impulsionadores do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social?
Ivo Poletto – Uma questão que é desafiadora para todo mundo é a questão do urbano, do mundo das cidades. Percebemos que há muitas iniciativas no mundo urbano, no setor popular. Iniciativas que estão ligadas principalmente à questão da habitação popular e do direito à habitação. Dito isso, poderia apontar que aqui no Brasil nós temos, por exemplo, no próprio Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, movimentos articulados com caráter urbano, mesmo que ainda bastante frágil, que se organizam para que possam enfrentar os problemas climáticos extremos.

– Cancún conseguiu fazer acordos melhores do que Copenhague?
Ivo Poletto – Cancún conseguiu, ao menos, desmontar um certo sentimento de desânimo que havia. Neste sentido, a COP-16 representou, de fato, uma surpresa, pois ali se retomou a possibilidade de acordos mundiais. Neste sentido, eu acredito que ele terminou avançando em relação à Copenhague.

Agora, se nós olhamos o conteúdo do que foi aprovado, poderíamos dizer que ficou muito no espírito de Copenhague, ficou ainda muito determinado pelo econômico, muito ainda pela perspectiva de fundos, de bônus de carbono, tentando, então, preservar o que nós temos. Isso é ainda muito pouco em relação ao que deve ser construído positivamente de mudanças, sejam mudanças no funcionamento da economia, sejam mudanças no âmbito do consumo, ou ainda mudanças em outras dimensões da nossa vida que são essenciais se nós quisermos ajudar a terra a recuperar o seu equilíbrio.

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