Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

O Brasil no contexto da crise civilizacional >>> IHU - UNisinosl

O que fica evidente tendo como referência a análise da crise civilizacional – manifesta nas crises econômica, ecológica, energética, alimentar e do trabalho – é que o futuro da vida, e especialmente, da vida humana na Terra dependerá do rumo que se der hoje à economia. Por essa razão, a discussão sobre os modos de produção e de consumo torna-se crucial no contexto de uma sociedade ecologicamente sustentável.

Tendo como referência a análise anterior, a questão de fundo que se apresenta é se o Brasil tem consciência que está frente a uma crise epocal que tem no seu âmago a questão ecológica. E ainda mais, se essa consciência se traduz em ações, iniciativas e políticas que contribuem para mitigar o colapso ambiental ou, ao contrário, estamos jogando pela janela a oportunidade epocal de sinalizar para a possibilidade de uma sociedade sustentável e outro padrão de convivência humana.

Propõe-se aqui uma leitura crítica – tendo como referência setores do movimento social – ao atual modelo em curso na sociedade brasileira.

O Brasil e a opção pelo neo-desenvolvimentismo

O modelo atual poderia ser descrito como neo-desenvolvimentista. Ao projeto econômico de corte neoliberal do governo anterior intitulado de ‘inserção subordinada à economia internacional’, o governo atual respondeu com a retomada do modelo econômico ‘nacional-desenvolvimentista’ – política econômica na qual o Estado exerce um forte papel indutor na perspectiva do crescimento econômico –, com significações semelhantes e distintas daquele adotado a partir dos anos 30.

O modelo neo-desenvolvimentista atual caracteriza-se por duas vertentes. Por um lado, tem-se o Estado financiador que, utilizando o seu banco estatal, o BNDES e os fundos de pensão, exerce o papel de indutor do crescimento econômico fortalecendo grupos privados em setores estratégicos. Por outro, tem-se o Estado investidor responsável pelo investimento em mega-obras de infra-estrutura que se manifesta no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Porém, diferentemente do nacional-desevolvimentismo da Era Vargas, o Estado não é o proprietário de empresas, mas se torna a principal alavanca para criar gigantes privados que tenham capacidade de disputa no mercado interno e internacional.

Destaque-se ainda que ao lado do Estado financiador e do Estado investidor, tem-se o ‘Estado Social’. Assiste-se à retomada do papel do Estado como provedor de políticas sociais, sobretudo de mitigação da pobreza, dentre as quais o Bolsa Família é a mais emblemática. O governo atual caracteriza-se ainda pelo reposicionamento do Brasil na geopolítica mundial. Se no governo anterior a presença do Brasil no exterior era raquítica, assiste-se agora a elevação do Brasil à condição de potência e sua transformação num global player. O país assumiu definitivamente o papel de nação estratégica – política e econômica – no continente latino-americano e faz-se ouvir nos grandes fóruns internacionais. De mero coadjuvante passou a importante protagonista nos debates de fundo da sociedade mundial.

O Estado financiador
O Estado financiador vem possibilitando a constituição de fortes grupos econômicos, ou ainda, a formação de grandes multinacionais brasileiras com capacidade competitiva no mercado internacional. A formação desses grupos tem no Estado, através do BNDES, a principal alavanca. O BNDES – hoje, o maior banco de fomento do mundo – transformou-se na mais poderosa ferramenta de reestruturação do capitalismo brasileiro.

Nas palavras de Luciano Coutinho, presidente do BNDES, a síntese do novo papel do Estado-financiador: “Empresas brasileiras competentes e competitivas devem merecer o apoio do BNDES para se afirmarem internacionalmente”.

Criado na década de 50 pelo então presidente Getúlio Vargas, o BNDES surgiu para dar apoio à industrialização e planejar o desenvolvimento de longo prazo. Na década de 70, com os militares, o banco orientava-se pela regra da "substituição de importações". Nos anos 80, o banco se transformou num autêntico hospital, que socorria qualquer empresa em dificuldades. Na década seguinte, a dos anos 90, na Era FHC, o banco se tornou o grande articulador das privatizações, não apenas desenhando o modelo de venda das estatais, como também participando dos consórcios compradores.

Na Era Lula, o BNDES orienta-se pelo conceito de "desenvolvimentismo". E tem sido o principal agente de grandes fusões sempre com o objetivo de fortalecer o capital nacional privado em condições de competir com o capital transnacional. A principal característica do capitalismo brasileiro hoje é a ativa participação do Estado na constituição de novos ‘global players’ em diferentes ramos da atividade econômica. Com o governo Lula, particularmente em seu segundo mandato, o BNDES vem sendo decisivo para a conformação de alguns grupos econômicos que em comum, na maioria dos casos, têm o Estado como o indutor do negócio, seja através de empréstimos ou compra de ações. Em outros, o Estado é o facilitador ou ainda assume o papel de sócio. Em todos eles, a ação privilegia o fortalecimento do capital nacional frente ao capital transnacional.

Entre alguns casos, destacam-se o da telefonia: fusão da Oi com a Brasil Telecom – nesses dias o governo aportou ainda mais recursos para manter o controle da tele com a entrada do grupo português PT; petroquímica: fortalecimento do grupo Braskem; alimentação: formação da Brasil Foods (fusão da Sadia com a Perdigão) e fortalecimento dos grupos Margrig e Bertin; papel e celulose: formação de fortes grupos privados (fusão entre a Votorantim Celulose e Papel (VCP) e a Aracruz); sucroalcooleiro: fortalecimento do grupo ETH Bioenergia, controlado pela Odebrecht.

O nacional-desenvolvimentismo praticado pelo governo Lula é distinto do praticado na Era Vargas. No período anterior, os investimentos realizados pelo Estado constituíram a formação de um capital produtivo sob controle do próprio Estado. Foi assim que surgiu a CSN, a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobras, a Eletrobrás, o sistema Telebrás. Foram essas empresas que possibilitaram a modernização – conservadora – do país e o alçaram a uma das potências econômicas mundiais.

Hoje, o nacional-desenvolvimentismo mudou de coloração. Ele presta-se antes de tudo ao fortalecimento do capital privado. É dessa forma que se explicam os generosos subsídios não apenas para fusões, mas também para a Vale do Rio Doce e para a Embraer. Atente-se para o fato de que o dinheiro público do BNDES lastreado sobretudo pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) está sendo utilizado em muitos casos para irrigar empresas que foram privatizadas, como é o caso da própria Vale e das empresas de telefonia. Essas mesmas empresas, por ocasião da privatização, receberam transferência de recursos públicos e agora, novamente o banco entra com recursos favorecendo as mesmas empresas, mas em mãos privadas. Trata-se de um capitalismo sem riscos.

O Estado investidor
Ao lado do ‘Estado financiador’ na criação e/ou fortalecimento de grupos de capital privado nacional, o governo aposta em outra vertente do nacional-desenvolvimentismo, através do ‘Estado investidor’. A vertente do ‘Estado investidor’ se manifesta no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi saudado como a retomada do ideário desenvolvimentista. Em síntese, o PAC é de um conjunto de grandes obras de infra-estrutura para alavancar o crescimento econômico do país. Entre as principais, encontra-se a construção de hidrelétricas – Belo Monte, Santo Antônio e Jirau – a transposição do Rio São Francisco, a retomada do programa nuclear, a construção e/ou duplicação de rodovias, como a polêmica BR 319. Há ainda investimentos em ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, saneamento e habitação popular.

Na visão de setores do movimento social, o PAC é refém de um modelo de desenvolvimento preso ao século XX. Nesse sentido, o PAC coloca-se de costas para a problemática ambiental e reafirma a lógica produtivista da sociedade industrial. Exatamente no momento em que se fala em descarbonizar a economia, o país reafirma um modelo tributário ainda da Revolução Industrial.

No contexto do Estado financiador e do Estado investidor que tem o BNDES como principal alavanca destaque-se o surgimento de uma nova categoria: Os “impactados” – todos aqueles que precisam ser removidos em função de grandes projetos, como hidrelétricas, mineradoras e rodovias, entre outros. O movimento social dos impactados identifica no banco o grande “motor” dos mega-projetos e querem debater o seu papel e sua concepção de desenvolvimento.

Os movimentos sociais querem debater o papel do banco e elaboraram um documento intitulado “Plataforma BNDES” onde constam as proposições para uma reorientação do Banco. Segundo João Roberto Lopes, “as proposições focam na adoção de uma política de informação e ambiental, que preveja critérios sociais e ambientais em seus financiamentos. Além disso, propõe-se o desenvolvimento pelo Banco de políticas setoriais nas áreas da agricultura familiar e campesina, de energia e clima, do desenvolvimento de infraestrutura social, da descentralização do crédito e da integração regional”. Em sua opinião, “discutir o BNDES é discutir o Brasil que queremos”.

Os grandes projetos em curso na sociedade brasileira, portanto, são compreensíveis a partir do da concepção neo-desenvolvimentista que se aplica no país. A análise de alguns desses projetos auxilia na concepção do Brasil que se quer.

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