A origem das crises anteriores encontra-se no fato de que economia deixou de ser a “serva” da sociedade para se tornar a sua “senhora”, a “grande transformação” de que nos fala Karl Polanyi. Impulsionada pela ideia de progresso linear e quantitativo assentado sobre o crescimento econômico e recursos naturais ilimitados, a economia, na sociedade industrial, foi se desvencilhando gradativamente da ética e da política e passou a ser orientada e regida tão somente pelo mercado. Ainda mais, para além ruptura da relação entre economia e sociedade, também a ligação entre economia e ambiente foi se desfazendo.
Hoje, portanto, já não podemos mais dar centralidade apenas a economia para depois nos ocupar das outras crises. A questão fulcral diz respeito ao esgotamento do modelo de desenvolvimento criado e incrementado na sociedade industrial baseado em uma visão linear, progressiva, infinita e redutora de desenvolvimento, e que tem no consumo desenfreado a sua mola propulsora.
Por outro lado, a crise econômico-financeira que estalou nos Estados Unidos em agosto de 2007 – que arrastou o mundo para uma recessão levando milhares ao desemprego – apresenta-se com a novidade de que a mesma estourou completamente a dicotomia – ainda cara a muitas esquerdas – de economia real versus economia financeira. “Hoje nossas vidas estão inteiramente no processo de financeirização: quando usamos o cartão de crédito ou o cheque especial, quando recorremos a empréstimos para ter acesso a necessidades fundamentais (casa, formação, mobilidade, e principalmente a saúde), quando uma parte dos salários é paga em stock option (ações) ou as pensões se tornam fundos de investimentos”, destaca Gigi Roggero.
Segundo ele, “para a economia clássica e moderna, a financeirização e a crise intervinham no final do ciclo, após a expansão da economia real ligada à afirmação de um modelo produtivo. Hoje, a financeirização não só recobre o ciclo econômico inteiro, mas põe em discussão a própria categoria de ciclo”. Logo, diz Roggero, “a crise, longe de estar confinada a uma fase descendente do ciclo e de preparar uma nova expansão, tornando-se impulsionadora de uma dinâmica de crescimento, não é mais somente um dado estrutural do desenvolvimento capitalista, mas torna-se seu elemento permanente e insuperável”. De certa forma, foi a obsessão pelo consumo da sociedade americana (imóveis, carros, bens duráveis) que lançou o mundo na crise.
O mesmo afirma Carlo Vercellone para quem a relação entre capital produtivo versus capital financeiro já não existe mais. Segundo ele “insistir nas finanças como se se tratasse de um poder autônomo quase absoluto, tende a fazer esquecer a compenetração entre capital financeiro e capital produtivo e as outras causas socioeconômicas que estão na origem da crise sistêmica do capitalismo contemporâneo”. Esclarecendo melhor, o que agora precisa ser compreendido é que a financeirização não é mais um processo externo à produção, mas constitui, ao contrário, sua forma econômica real.
Nesse sentido, “a financeirização – longe de contrapor-se à economia real – é a forma da economia capitalista apta para exercer o comando sobre o trabalho cognitivo e sobre a produção do saber vivo”, afirma Gigi Roggero; ou seja, a financeirização da economia já se configura como um novo estágio de apropriação do capital pelo trabalho imaterial que se realiza. Aí está o cerne da crise.
Na opinião de Andrea Fumagalli, economista, o que é preciso compreender é que “atualmente os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais”.
Por outro lado, junto com a crise, os mitos econômicos vendidos como verdades irrefutáveis caíram por terra. Tardiamente há um reconhecimento – de algo que há muitos anos vem afirmando o movimento social – de que o mercado precisa ser regulado. A tese liberal do mercado como aquele que se auto-regula se mostrou uma falácia. Os que ousavam criticar a desregulação financeira eram vistos como ‘atrasados’, entretanto, a própria Meca do liberalismo, os EUA, que impuseram as exortações do ‘pensamento único’ ao mundo, reconheceu que o mercado precisa de um mínimo de regulação. A maior potência econômica do mundo, os EUA, reconhece que a sua cruzada em defesa das virtudes do liberalismo esgotou-se. Os anos dourados do neoliberalismo e as orientações do ‘Consenso de Washington’ entraram em crise, ao menos do ponto de vista ideológico.
Ao mesmo tempo, a crise não é apenas de macro teoria, é também de natureza ética. Todo sistema histórico de organização da sociedade necessita de uma base de legitimação moral. Com a crise rompeu-se a ética de um sistema fundado em valores que decorrem da máxima “vícios privados, benefícios públicos”, ou seja, a idéia de Bernard de Mandeville, de que a sorte dos demais é, em última instância, uma manifestação do nosso amor-próprio, do nosso auto-interesse. A tese do egoísmo como virtude exposta por Adam Smith ao destacar que a busca compulsiva do próprio interesse conspiraria para a elevação do bem-estar da sociedade falhou. A cobiça desmedida dos agentes financeiros desatou a crise.
Nesta perspectiva, assistiu-se ao retorno do protagonismo do Estado que havia sido colocado de lado. O Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução. O Estado se tornou a tábua de salvação do capitalismo – assistiu-se a um derrame de dinheiro público para salvar bancos e fábricas. O dinheiro que nunca se tem para aplicar na redução da pobreza e da desigualdade no mundo apareceu para resgatar os interesses dos mais poderosos.
O lado positivo da crise encontra-se na possibilidade do fim do unilaterismo e na formação de um mundo multipolar e, sobretudo, no revigoramento das teses do movimento antiglobalização. A necessidade de controle do capital financeiro propugnada pela Attac – que ganhou corpo ao longo das edições do Fórum Social Mundial (FSM) retomou fôlego novamente.
Carta da Terra
"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)
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