A crise energética, com graves repercussões ao meio ambiente, apresenta implicações também para a crise alimentar. A Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação – FAO afirma que a produção de biocombustíveis priva o mundo de quase 100 milhões de toneladas de cereais, que poderiam ser destinados à alimentação. A opção pela ampliação de áreas cultiváveis para produção de biocombustível rouba áreas da agricultura de subsistência.
O ‘Seminário Internacional Agrocombustíveis como obstáculo à construção da Soberania Alimentar e Energética’ realizado por movimentos sociais denunciou que “o modelo de agricultura industrial, onde se inserem os agrocombustíveis, é intrinsecamente insustentável, pois apenas se viabiliza através da expansão das monoculturas, da concentração de terras, do uso intensivo de agroquímicos, da superexploração dos bens naturais comuns como a biodiversidade, a água e o solo. Os agrocombustíveis representam uma grave ameaça à produção de alimentos”.
O ‘Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar’ protagonizado pela Via Campesina realizado em Mali na África passou a denominar os biocombustíveis de agrocombustível. Na análise dos movimentos sociais do campo, o programa de matriz energética a partir do álcool não deve ser chamado de biocombustível e muito menos de biodiesel. Para os movimentos, "a expressão 'bio' que relaciona energia à vida, de forma genérica, é uma clara manipulação de um conceito que não existe. Devemos adotar sim, em todos os idiomas, o conceito de agro-combustíveis".
Os movimentos denunciam que o crescimento da monocultura em países em desenvolvimento e pobres tem como objetivo a manutenção do padrão de consumo american way of life e isso significa em última instância "tanques cheios a custas de barrigas vazias". A questão de fundo posta pelos movimentos sociais é se as terras do planeta se destinarão preferencialmente a atender aos cerca de 800 milhões de proprietários de automóveis, ou à garantia da segurança alimentar mundial do 1 bilhão de pessoas que passam fome no mundo.
“Já que não saiu a Alca, vamos de álcool”, afirmou Brian Dean, diretor-executivo da Comissão Interamericana de Etanol (CIE) do então governo Bush. Os EUA falam em reduzir o consumo de petróleo em 20% nos próximos dez anos substituindo-o pelo etanol, e querem o Brasil como parceiro preferencial na criação de um mercado hemisférico de etanol. É nessa perspectiva que deve ser compreendida o incentivo do governo brasileiro para que países da América Central, do Caribe e da África passem a produzir etanol para abastecer os países do norte. A lista da América Latina e Caribe tem como países elencados pelos americanos como potenciais produtores de etanol os seguintes países: Peru, Colômbia, El Salvador, Honduras, Guatemala, São Cristóvão e Névis, República Dominicana e Haiti.
Destaque-se ainda que a produção do etanol em larga escala apresenta como consequência a exploração do trabalho humano, muitas vezes em condições análogas à escravidão. A cana-de-açúcar traz consigo miséria e condições de trabalho aviltantes para um grande contingente de trabalhadores.
A crise alimentar serve ainda de pretexto para uma ofensiva dos defensores de uma nova “revolução verde” a partir dos organismos geneticamente modificados – OGMs. As indústrias de biotecnologia vendem os transgênicos, com a promessa de que a sua produtividade e adaptabilidade é a grande solução para a fome. Esconde-se na maioria das vezes que os transgênicos sequer estão destinados à alimentação humana, e além da exigência de grandes extensões de terra, consomem enorme quantidade de água e demandam uso intensivo de fertilizantes que causam estragos ambientais, muitos deles irreversíveis.
Na realidade, cresce em todo o mundo a desconfiança sobre os transgênicos. “Governos, produtores e consumidores por todo o mundo reconhecem cada vez mais que a engenharia genética não é confiável, nem viável, além de ser perigosa”, afirma Jeremy Tager, do Greenpeace Internacional.
Sobre a fome do mundo, registre-se que sua obscenidade se torna ainda maior quando se sabe que no mundo de hoje há mais comida do que em qualquer outro momento da história da humanidade; temos 6,7 bilhões de habitantes, e produzimos mais de 2 bilhões de toneladas de grãos, o que significa que produzimos quase um quilo de grãos por pessoa e por dia no planeta, amplamente suficiente para alimentar a todos; segundo a FAO o mundo precisaria de US$ 30 bilhões por ano para lutar contra a fome, recursos que significam apenas uma fração do US$ 1,1 trilhão aprovado pelo G20 para lidar com a recessão mundial; 65% dos famintos vivem em somente sete países; no mesmo momento em que 1 bilhão de pessoas estão passando fome, outro 1 bilhão sofre de obesidade por excesso de consumo; uma criança americana consome o equivalente a 50 crianças africanas da região subsaariana.
Muitos pensam que o problema da fome se deve ao excesso da população, de que não há alimentos para todos e se faz necessário o controle da natalidade. Essa tese não se justifica. A FAO há vinte anos afirma que o problema é político. A fome é um problema, sobretudo, de acesso à comida e não de disponibilidade de alimentos, ou seja, a crise alimentar não é uma crise fundamentalmente de produção, mas de distribuição. O problema está no mercado.
A razão para o aumento da fome está ainda associada, entre outros fatores, a crise econômica (leia-se especulação das grandes corporações com os alimentos que chamam de commodities), às mudanças climáticas que provocam em alguns momentos inundações e, em outros, secas terríveis, e ao aumento das controvertidas plantações para produzir combustível, que rouba áreas da agricultura de subsistência.
A crise alimentar está também associada aos escandalosos subsídios concedidos aos fazendeiros dos países ricos. Existe muito dinheiro para subsidiar a agricultura dos que já tem muito e pouco, ou quase nada, para os países pobres que mais precisam. Nas últimas décadas, o livre comércio e as políticas neoliberais favoreceram e incrementaram o agronegócio, em detrimento da agricultura familiar, da reforma agrária, da produção ecológica. A globalização não significou o livre comércio de comida de alguns países para outros. Pelo contrário, ela esmaga os países que podem produzi-la.
Carta da Terra
"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)
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