Wieland Wagner
Uma série de aparentes suicídios abalou a administração da Foxconn, uma fabricante de eletrônicos que produz componentes e monta produtos para muitas firmas do Vale do Silício. Centenas de milhares de pessoas moram e trabalham no complexo da fábrica da Foxconn no Sul da China, em condições que os críticos chamam de escravagistas.
Pouco depois das sete horas, meia hora antes do turno da manhã, jovens trabalhadores chineses passam por guardas uniformizados de cinza, pressionando suas identidades corporativas nos portões eletrônicos e esperando a luz verde. Depois, eles se apressam pelo labirinto cinza dos dormitórios e corredores da fábrica.
Cerca de 300.000 pessoas trabalham aqui, na cidade de Shenzhen, perto de Hong Kong, em um gigantesco complexo que pertence à firma taiwanesa Foxconn. Outras 120.000 pessoas trabalham em um complexo menor, a alguns blocos de distância. Elas montam produtos cultuados de marcas digitais mundiais como Apple, Nintendo e Dell, que vão desde o iPhone e iPad até notebooks. Muitos sacrificam sua saúde; outros, suas vidas.
Ma Xiangqian, 18, fazia parte deste peculiar mundo Foxconn, onde tudo é numerado: prédios, máquinas, componentes, produtos acabados e, é claro, pessoas. Por salários de até 1.940 yuans por mês (em torno de R$ 500), o jovem da província de Henan fazia turnos de 12 horas colocando peças plásticas em uma máquina que forma o corpo de computadores da Apple. Depois, ele ia dormir com nove colegas em um quarto de um dos muitos blocos de dormitórios no complexo da fábrica.
Fábrica ou “campus”?
Certa manhã de janeiro, Ma apareceu morto perto da base de um desses prédios. Causa oficial da morte: “Queda de altura”. Um total de 13 casos similares nas fábricas da Foxconn neste ano -10 fatais- produziram laudos similares. A mais recente, no dia 26 de maio, ocorreu horas após uma visita à fábrica de Terry Gou, diretor da empresa dona da Foxconn. E em julho de 2009, um técnico pulou para sua morte após ser suspeito de roubar um protótipo do iPhone.
A série de aparentes tentativas de suicídio abalou a administração da maior fabricante de eletrônicos da China. Liu Kun, 40, que se diz diretor de relações com a mídia, anda com uma camisa suada. Ele evita a palavra “fábrica”, preferindo o termo “campus” –como se a Foxconn fosse uma universidade. Em um carrinho de golfe movido a bateria –guiado por Chen Hongfang, segundo no comando do sindicato da empresa, que é controlado pelo Partido Comunista- Liu mostra ao visitante as ruas ladeadas por palmeiras. Eles querem provar como é boa a vida dos operários.
Liu aponta orgulhosamente cada uma das lojas. Franquias de cadeias de fast-food; a cidade da Foxconn tem um hospital, onde os operários podem se tratar; há um campo de futebol, uma academia de ginástica, uma série de lanhouses, uma sala de ensaio para a trupe de dança da corporação. Monitores de televisão instalados nas ruas –ou nos refeitórios- passam programas de um canal de televisão corporativo.
Essas oportunidades de diversão não mudam o fato que os operários da Foxconn têm que passar suas vidas quase integralmente dentro complexo. Caminhão após caminhão entrega componentes e leva produtos acabados. Não há depósitos na Foxconn. Quando os operários montam um telefone celular ou laptop, o aparelho vai direto para os clientes. Esse fluxo de produtos não pode diminuir. Nas ruas da Foxconn, os trabalhadores têm permissão para andar lado a lado somente em pares. Se houver três pessoas, devem formar uma fila.
Regras fastidiosas
Ordem e organização são tudo, mesmo na cozinha da fábrica. O prédio cinza parece uma caixa e é tão anônimo quanto os outros. Por dentro, o ambiente é igualmente industrial. Um exército de cozinheiros com jalecos brancos e sapatos de borracha prepara refeições para os trabalhadores, supervisionados pelos gerentes da Foxconn por uma enorme parede de monitores. Há regras fastigiosas em cada nível, inclusive no uso de ingredientes, lavagem de pratos, frituras, fervuras e assados. Todos os dias, os cozinheiros fazem três toneladas de porco, três toneladas de frango, 60.000 ovos e 20 toneladas de arroz.
Se você quiser sair da cozinha, tem que lavar as mãos. Só depois disso a porta se abre. Os prédios de dormitórios cinzentos têm 5 a 12 andares, e também ali os trabalhadores têm que passar seus crachás de identidade pelos aparelhos de controle antes de poderem sair.
Os diretores da Foxconn não sabem dizer se o tamanho gigantesco da fábrica não é um fator que abala a psique dos trabalhadores. O tamanho, afinal, garante poucas despesas e altos lucros –ao menos de acordo com Steve Chu, 49, taiwanês responsável por um dos prédios de vários andares da fábrica. Novecentos trabalhadores trabalham em apenas um andar.
Os homens e mulheres uniformizados de jalecos e quepes brancos são proibidos de ter conversas pessoais. Essa regra está impressa em seus crachás de identidade corporativa. Só o que se ouve são os assobios das máquinas nas quais inserem placas de circuito verdes para laptops ou leitores de cartão de crédito. Em oito esteiras rolantes, eles terminam o trabalho de oito produtos diferentes para vários mercados mundiais.
“O diabo está nos detalhes!”
O gerente Chu e seus supervisores de linha de montagem estimulam os operários infatigavelmente para que sejam mais precisos e eficientes. Até os degraus nas escadas foram enfeitados com frases de advertência: “O diabo está nos detalhes!” ou “a oportunidade aguarda os que estão preparados!”
As máximas motivadoras são inspiradas por Terry Gou, 59, fundador da Hon Hai Precision Industry, proprietária da Foxconn. Os trabalhadores adotaram o apelido respeitoso de “Lao Gou” (ou “velho Gou”) para o carismático bilionário que evita a imprensa. Sua família fugiu dos comunistas chineses para o Taiwan em 1949.
Ele construiu seu império 36 anos atrás com uma fábrica de botões para mudar o canal de televisores preto-e-branco. Parte de seu capital inicial de US$ 7.500 foi emprestado por sua mãe. Mais tarde, ele produziu entradas para conectores de computadores e, em 1988, ele abriu sua primeira fábrica de salários baixos na China continental.
Agora, a Foxconn, junto com outros gigantes taiwaneses, é fornecedora de enormes setores da indústria de eletrônicos e produz telefones celulares e laptops para marcas mundiais. A Foxconn emprega 800.000 pessoas em toda a China e contratou 150.000 novos trabalhadores na primavera.
Contudo, os incidentes recentes com mortos e feridos geraram críticas mesmo dentro da China, e surgiram questionamentos sobre como a firma produz seus produtos eletrônicos de ponta. A família da vítima Ma Xiangqian quer processar a Foxconn para que explique as mortes de seus operários.
Tormento brutal
É uma batalha desigual. No início do ano, Ma Zishan, 58, e sua mulher, Gao Chaoyin, 49, cultivavam árvores. Agora, dividem um quarto perto da fábrica da Foxconn com duas de suas três filhas. Eles dormem em colchões de palha. A única decoração é um retrato do filho morto que, segundo a tradição de Confúcio, levava as esperanças de futuro da família. “Foxconn, diga a verdade”, escreveu o pai em letras pretas em torno da foto. “Minha vida perdeu o sentido”, diz ele.
A filha mais jovem, Liqun, 22, e seu namorado também trabalhavam na Foxconn até recentemente. Eles se demitiram para lutar contra o colosso taiwanês.
Liqun viu seu irmão pela última vez seis dias antes dele morrer. “Ele estava animado”, diz ela, “porque tinha acabado de se demitir”. Ela acrescenta que um gerente de produção vinha atormentando-o brutalmente após a quebra de uma furadeira em sua máquina. Como punição, Xiangqian tinha que limpar as latrinas.
Encostados nas do quarto estão os cartazes usados pela família para protestar nos portões da fábrica. Com fotos ampliadas do corpo de Xiangqian, eles querem chamar atenção para as inconsistências da história de sua morte. Sua irmã Liqun conta ter visto ferimentos na cabeça do defunto –que pareciam como se tivessem sido feitas por uma furadeira. Ela também achou estranhas feridas em seu dorso, que não sugerem suicídio. As gravações da câmera de vigilância da Foxconn da hora da morte do trabalhador sumiram.
“Doença do espírito”
Ma e suas filhas falam cautelosamente e parecem tímidos. Eles evitam culpar diretamente a poderosa Foxconn, mas insistem que a situação deve ser esclarecida. Eles querem questionar na justiça o relatório oficial de sua morte.
O porta-voz da fábrica, Liu, contudo, reage com indignação às perguntas sobre o caso de Ma. Ele parece satisfeito com a autópsia oficial. “Em quem você acredita? Na Foxconn ou na família de Ma?”, pergunta.
Liu acrescenta que os operários da fábrica nunca têm que limpar latrinas –afinal, os faxineiros fazem isso. É claro que pode haver acidentes trágicos com alguns dos 420.000 trabalhadores em Shenzhen, diz ele. As pessoas sofrem com problemas pessoais, dores amorosas, saudade de casa, comida diferente. “Ou doenças do espírito”, diz Liu, levantando um dedo. Um trabalhador que recentemente se jogou da escada sofria de complexo de perseguição, diz ele, acrescentando que a mão-de-obra atual, cuja maior parte tem perto de 20 anos, é mais vulnerável do que as gerações anteriores.
A visita de Terry Gou nesta semana não conseguiu calar as críticas. Ele negou que as mortes recentes se devessem às condições de trabalho da Foxconn. Horas depois, um operário de 23 anos em um complexo diferente da empresa, no Noroeste da China, caiu para sua morte de um dormitório. E na quinta-feira, um homem de 25 anos teria tentado suicídio cortando-se, mas sobreviveu.
Pressão internacional?
Uma tempestade foi gerada por um vídeo recente divulgado na Internet chinesa, que supostamente mostrava guardas de segurança em uma fábrica da Foxconn em Pequim chutando e batendo nos funcionários. Wang Tongxin, autoridade sindical, advertiu que o fornecedor tem que demonstrar mais respeito pelo povo jovem chinês que trabalha em suas fábricas. Após a morte do técnico do iPhone no ano passado, a Apple veio a público: “Exigimos que nossos fornecedores tratem seus trabalhadores com respeito e dignidade”.
O porta-voz da empresa, Liu, fica feliz em mostrar aos visitantes do centro de “saúde mental” de sua fábrica. Um terapeuta atende um funcionário e cartazes vermelhos adornam as fachadas de alguns dormitórios, estimulando as pessoas a cuidarem umas das outras.
Dentro dos prédios residenciais, porém, os trabalhadores continuam suas vidas de acordo com a lógica da produção de baixo custo. Em quartos cheios com 10 camas, metade dos moradores estão deitados exaustos em seus colchões. Alguns dos que acham apertado demais aqui estão esticados diante das televisões penduradas nas escadas. Cada recreio é precioso: logo terão que voltar para seus turnos de 12 horas.
Tradução: Deborah Weinberg
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