Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

O aquecimento global na mira do Direito Ambiental /// Revista IHU-Unisinos

André Weyermüller reconhece que, em relação ao aquecimento global, o Direito Ambiental ainda tem um longo caminho para evoluir através de normas jurídicas e principalmente mecanismos adaptados à nova realidade que enfrentamos, uma realidade que indica um futuro incerto, repleto de riscos relacionados às decisões que tomamos hoje, sejam elas jurídicas ou não

Por Graziela Wolfart

Para o autor do livro recentemente lançado Direito ambiental e aquecimento global, André Weyermüller, o Direito não tem como enfrentar a questão do aquecimento global apenas com seus instrumentos tradicionais voltados, na sua maioria, para a reparação de danos. “Faz-se necessário buscar soluções que passem pelo Direito, mas que consigam alcançar um mínimo de conciliação entre as exigências do desenvolvimento e as limitações do meio ambiente”. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail, o professor e advogado adianta aspectos da obra e defende que “o mundo ideal teria como premissa básica o cuidado e a preocupação séria com o futuro. Não vivemos, porém, num mundo ideal e temos que nos conscienti¬zar que criamos intrincadas ligações entre economia, direito e política que não podem ser desfeitas facilmente, pelo contrário”.

André Rafael Weyermüller, advogado, é professor de Direito Ambiental e coordenador da espe¬cialização em Direito Ambiental na Unisinos. Pesquisador dos grupos de pesquisa Teoria do Direito e Jusnano, que investiga os reflexos que as pesquisas nanotecnológicas provocarão na sociedade, Weyermüller desenvolve tese de doutorado na temática ambiental. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o aquecimento global é visto pelo direito ambiental?

André Rafael Weyermüller - O direito ambiental se ocupa de múltiplas temá¬ticas relevantes, sejam elas locais ou de abrangência maior, como o aquecimen¬to global. Os instrumentos que o Direito dispõe para enfrentar essas demandas não são ideais. Assim, uma ação am¬bientalmente relevante pelo sistema do Direito enfrenta limitações e difi¬culdades que ficam cada vez mais com¬plexas na medida em que a amplitude do problema é mais extensa. Como o aquecimento global não respeita fron¬teiras, tampouco as normas jurídicas dos Estados, reveste-se de especial complexidade devido aos múltiplos fa¬tores que podem influenciar a tomada de decisões, visando seu enfrentamen¬to. O Protocolo de Kyoto, por exemplo, representa um conjunto de decisões e iniciativas às quais os países se compro¬metem a alcançar um objetivo comum que depende também de acertos e adaptações nos ordenamentos jurídicos nacionais para colocar em prática esses compromissos. Especificamente, em re¬lação ao aquecimento global, o Direito Ambiental ainda tem um longo caminho para evoluir através de normas jurídicas e, principalmente, mecanismos adapta¬dos à nova realidade que enfrentamos, uma realidade que indica um futuro in¬certo repleto de riscos relacionados às decisões que tomamos hoje, sejam elas jurídicas ou não.

IHU On-Line - Quais os caminhos para um possível enfrentamento do pro¬blema do aquecimento global pelo Direito?

André Rafael Weyermüller - Entendo que temos alguns caminhos para seguir, mas a questão central é justamente criar novos caminhos, novas alterna¬tivas que não se resumem a normas jurídicas. Certamente que carecemos ainda de importantes regulamenta¬ções, como no que se refere à natu¬reza jurídica dos créditos de carbono, limitação de emissões e incentivos fiscais, por exemplo. Precisamos, sim, de normas que estabeleçam limites e parâmetros mais objetivos. Porém, a complexidade do problema exige res¬postas mais abrangentes e adaptadas

à realidade. O Direito não tem como enfrentar a questão apenas com seus instrumentos tradicionais voltados, na sua maioria, para a reparação de danos. Faz-se necessário buscar so¬luções que passem pelo Direito, mas que consigam alcançar um mínimo de conciliação entre as exigências do de¬senvolvimento e as limitações do meio ambiente. O mundo ideal teria como premissa básica o cuidado e a preocu¬pação séria com o futuro. Não vivemos, porém, num mundo ideal e temos que nos conscientizar que criamos intrin¬cadas ligações entre economia, direito e política que não podem ser desfeitas facilmente, pelo contrário.

IHU On-Line - Como o senhor define o contexto no qual se insere o aque¬cimento global?

André Rafael Weyermüller - Defino esse contexto como sendo de alto ris¬co futuro. Vivemos uma Sociedade de Risco, conforme descreve Ulrich Beck . Fatores econômicos estão intimamen¬te ligados com possíveis situações fu¬turas de danos provocados pelo clima. Modificar certas lógicas e práticas é algo que terá um custo altíssimo que praticamente ninguém está disposto a pagar. A globalização reforça esse contexto de riscos futuros na medida em que representa, por um lado, im¬portantes facilidades e melhorias nas condições de vida para uma parte da população mundial e, por outro, re¬presenta a pulverização de problemas por todo o planeta, podendo afetar qualquer um em qualquer lugar com intensidade imprevisível.

IHU On-Line - O que caracteriza a chamada Sociedade de Risco?

André Rafael Weyermüller - A socie¬dade industrial de outrora podia deli¬mitar e controlar os efeitos negativos

Ulrich Beck: sociólogo alemão da Universi¬dade de Munique. Autor de A sociedade do ris¬co. Argumenta que a sociedade industrial criou muitos novos perigos de risco desconhecidos em épocas anteriores. Os riscos associados ao aquecimento global são um exemplo. Confi¬ra na edição 181 da revista IHU On-Line, de 22-05-2006, intitulada Sociedade do risco. O medo na contemporaneidade, a entrevista In¬certezas fabricadas, concedida por Beck com exclusividade. O material está disponível para download em http://www.unisinos.br/ihuon¬line/uploads/edicoes/1158345309.26pdf.pdf. (Nota da IHU On-Line)produzidos com o processo de desen¬volvimento. Hoje, porém, vivemos in¬seridos numa sociedade caracterizada pela incerteza em relação ao futuro e pela possibilidade de destruição da vida, seja por meio de armas nuclea¬res, seja pela intervenção negativa so¬bre o meio ambiente. Os riscos estão ligados às nossas decisões em relação ao futuro e aos perigos que sempre existiram e que agora são potencia¬lizados por nossa intervenção direta sobre o meio ambiente, a exemplo do fenômeno do aquecimento global.

IHU On-Line - Em que medida os cré¬ditos de carbono podem ser aponta¬dos como uma forma de estabelecer uma comunicação mais efetiva entre Direito e Economia em benefício do meio ambiente?

André Rafael Weyermüller – Defen¬do, no livro, essa possibilidade a qual tentarei sintetizar. Numa perspectiva sistêmica de Niklas Luhmann , tem-se que as racionalidades dos sistemas so¬ciais como o Direito e a Economia são distintas, pois suas lógicas são diversas. Reduzindo isso a um código binário, o sistema do Direito funcionaria dentro de uma lógica legal/ilegal, enquanto que a Economia teria um código ba¬seado em lucro/não-lucro. Qualquer influência do Direito sobre a Economia tem, em termos sistêmicos, um resul¬tado imprevisível. Uma multa aplicada ou uma restrição a determinada ativi¬dade repercute negativamente dentro da lógica econômica. Existe assim, um problema comunicativo entre os sistemas que precisa ser, de alguma forma, superado. Essa superação pode ocorrer através de elementos que con¬ciliem essas duas lógicas distintas. Conforme explico no livro, os créditos de carbono representam um exemplo concreto onde essa mecânica se apli¬ca. Não defendo que esse sistema de

Niklas Luhmann (1927-1998): sociólogo ale¬mão. Em língua portuguesa, foram publicadas as suas seguintes obras: Legitimação pelo procedimento (Brasília: Ed. Univ. de Brasília, 1980); Sociologia do Direito (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985); A Improbabilidade da Comunicação (Lisboa: Vega, 1992). Em 15-03-2005, no evento Abrindo o Livro, promo¬vido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, o Prof. Dr. Leonel Severo Rocha, da Unisinos, apresentou El derecho de la sociedad, obra de Niklas Luhmann. (Nota da IHU On-Line)compensação de emissões seja a solu¬ção para o problema do aquecimento global, tampouco para o problema co¬municativo entre os sistemas, porém, a ideia central funciona dentro de uma lógica de adaptação das necessidades ambientais com os interesses econô¬micos. Acreditar que a economia vai se adaptar sem nenhum tipo de incen¬tivo me parece indicativo de certa in¬genuidade. Não se trata de submissão à economia, mas sim uma adaptação realista.

IHU On-Line - Quais os principais conceitos e mecanismos do Direito Ambiental?

André Rafael Weyermüller - O Direito Ambiental é um ramo novo do Direi¬to e tem certas particularidades que o tornam, como um todo, instrumento necessário para viabilizar uma ação mais protetiva do meio ambiente em face das exigências materiais que o mercado faz em prejuízo do bem ju¬rídico, objeto da proteção. Não só o mercado, mas as necessidades mate¬riais de sobrevivência da população mundial, que cada vez mais precisará de água, terras cultiváveis, energia e espaço para ocupação. Procuro expor, no livro, alguns dos conceitos e me¬canismos, como as responsabilidades ambientais, os princípios, o licencia¬mento, entre outros. Basicamente, as leis, os princípios e as resoluções do Conama formam a base desses ins¬trumentos de tutela jurídica. Analiso também, e com mais ênfase, mecanis¬mos mais específicos, como os créditos de carbono.

IHU On-Line - Quais os principais desafios hoje na área do direito am¬biental? É uma área em constante expansão?

André Rafael Weyermüller - O sistema do Direito enfrenta importantes desa¬fios nas mais diversas áreas. O Direito Ambiental enfrenta seus próprios de¬safios centrados, sobretudo, nos diver¬sos interesses que mostram sua força a todo o momento. É muito difícil con¬ciliar esses interesses sem inviabilizar certas atividades econômicas ou abrir mão de um ambiente preservado con¬forme estabelece a Constituição. Certamente a preocupação com o tema nos últimos anos aumentou muito o número de demandas judiciais e procedimentos administrativos em diversos órgãos am¬bientais. Isso representa uma expansão muito forte da área, que exige cada vez mais profissionais habilitados e prepa¬rados para operar os instrumentos e mecanismos disponíveis.

IHU On-Line - O que podemos en¬tender pelo princípio da precaução? Como ele pode ser implantado? O Protocolo de Kyoto pode ser citado como exemplo aqui?

André Rafael Weyermüller - Os prin¬cípios de Direito Ambiental são uma importante fonte norteadora para a aplicação de normas jurídicas ambien¬tais, bem como para a programação do futuro, uma preocupação que deveria ser levada a sério. Faço, no livro, algu¬mas considerações sobre os princípios ambientais e concentro a análise no princípio da precaução o qual é o mais relevante entre todos, uma vez que se trata de um princípio que tem, em sua essência, a noção de antecipação, de cuidado e de planejamento do futuro, que sempre foi incerto, mas que, em nossos tempos, é especialmente impre¬visível, devido ao avanço tecnológico, o aumento populacional e a acumulação de décadas de descaso e utilização ir¬responsável dos recursos naturais. De¬fendo que essa essência do princípio pode ser reconhecida no Protocolo de Kyoto. Mesmo não estando isento de críticas, esse Protocolo representa uma iniciativa positiva que, através dos cré¬ditos de carbono, busca fomentar o de¬senvolvimento de alternativas capazes de modificar o modelo de desenvolvi¬mento, promovendo também o princípio do desenvolvimento sustentável. Utili¬zo como exemplo de empreendimento com essa vocação o Parque Eólico de Osório, o qual representa uma mudança importantíssima na matriz energética e de adaptação aos novos tempos.

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