Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

Carcinicultura e os mangues, artigo de João Lara Mesquita

Publicado em junho 7, 2011 por HC
[O Estado de S.Paulo] A discussão sobre o novo Código Florestal, recém-aprovado na Câmara dos Deputados, esconde alguns problemas que passaram despercebidos no noticiário e, especialmente, nos artigos de especialistas que analisaram o assunto. Uma pena. O público saiu perdendo. É em nome dele que proponho esta pequena contribuição.

Não pretendo voltar aos temas polêmicos: reservas legais, anistia para quem desrespeitou a lei, tamanho da mata ciliar, etc. A polarização entre “mocinhos” e “bandidos” causou prejuízos demais.

Eis os fatos.
O relatório de Aldo Rebelo, sancionado na Câmara por 410 votos a favor, 63 contra e uma abstenção, alterou as áreas de preservação permanente em topos de morros, encostas, várzeas e margens de rios. Certo? Errado. Faltou citar um bioma importantíssimo que, da mesma forma, perdeu a proteção: os mangues (assim como as restingas).

O Código Florestal também vale, ou valia, para a zona costeira. Mas a discussão ficou de tal modo centrada entre a “floresta” e a “agricultura” que o litoral, como sempre acontece, perdeu espaço.

Os manguezais eram considerados áreas de proteção permanente por sua importância. Mas o lobby dos carcinicultores – produtores de camarão em cativeiro -, parece, venceu a parada. O novo Código Florestal, se aprovado no Senado, será o réquiem dos manguezais brasileiros.

Os mangues são extremamente importantes por vários motivos, a começar pela proteção que oferecem à linha da costa contra as marés, os ventos, as ressacas, forças naturais típicas da zona costeira. Ficou provado, quando do tsunami na Indonésia em 2004, que as áreas protegidas por manguezais sofreram estrago menor.

Do ponto de vista de vida marinha, os mangues são especiais. Suas raízes aéreas retêm nutrientes, o que os torna berçários importantíssimos. Um sem-número de peixes, moluscos e crustáceos dependem deles para procriar. Os mangues também filtram e melhoram a qualidade da água, enquanto servem como hábitat para diversos tipos de aves.

Tem mais. De acordo com matéria publicada pelo Estado na quinta-feira (Mangue concentra mais CO2 que floresta na Amazônia, 2/6, A18), relatório do IBGE divulgado na semana passada “revela que as maiores concentrações de carbono no solo da Amazônia estão em áreas de mangue, hoje ameaçadas pelas mudanças nas regras do Código Florestal aprovadas na Câmara”. Segundo a geógrafa Rosangela Garrido, citada na reportagem, “o trabalho reforça a importância da conservação de manguezais e o seu papel no equilíbrio climático”.

Quando produzi a série de documentários Mar Sem Fim, para a TV Cultura (2005-2007), naveguei desde o Oiapoque ao Chuí, visitando cada palmo da costa brasileira. Conheci, se não todas, a maioria das fazendas de camarão que proliferaram no Nordeste, desde o Piauí até o sul da Bahia, mas não apenas nessa região.

Fiquei horrorizado com o que vi, e aprendi, entrevistando mais de 40 especialistas da academia, raramente chamados para discussões como as da mudança do Código Florestal, diga-se.

Denunciei a carcinicultura com vigor, no meu site, nos documentários e no livro que publiquei ao fim da expedição (O Brasil Visto do Mar Sem Fim – editoras Terceiro Nome, Albatroz e Loqui, indicado ao Prêmio Jabuti na categoria reportagem). No livro, em dois volumes, sem o problema do espaço exíguo deste artigo, não economizei ao mostrar, até com fotos aéreas, o descalabro, espécie de escárnio contra o meio ambiente, provocado pela carcinicultura. Fiz questão de publicar o depoimento dos maiores especialistas em vida marinha e ecossistemas costeiros, unânimes em condenar o modo como ela vem sendo praticada no Brasil, ou seja, transformando imensas áreas de mangues em terra arrasada.

Sobram motivos para a condenação. Para começar, manguezais, áreas públicas, são “doados” aos produtores, que, ao contrário dos agricultores, têm a vantagem de não precisarem pagar a terra onde vão produzir. Curiosamente, descobri, a vasta maioria das fazendas pertence ou a políticos (entre os quais prefeitos, deputados e senadores) ou a grandes grupos empresariais. Desta vez não há a desculpa “dos pequenos produtores”.

Uma vez de posse da área, os mangues são arrasados. A vegetação é extirpada até a raiz. No lugar da
floresta são construídas as piscinas criatórias. A maioria sem bacia de sedimentação A contaminação do lençol freático quase sempre acontece. Assim fica mais fácil, e barato, sugar a água do estuário, através de bombas, para criar um camarão exótico, originário do Pacífico, o Paneus vannamei.

Ao detonar os mangues, os produtores criam conflitos sociais com as populações nativas que vivem do extrativismo. Constatei. Tenho depoimentos gravados, de várias pessoas dessas áreas, contando sobre ameaças e truculência por parte dos poderosos do camarão. Até um membro do Ministério Público do município de Natal, no Rio Grande do Norte, contou das ameaças que sua família passou a receber desde que entrou na luta contra a carcinicultura.

O desaparecimento de hábitats é o principal responsável pela perda de biodiversidade no mundo. Em segundo lugar está a introdução de espécies exóticas.

A carcinicultura é uma proeza. Faz as duas coisas simultaneamente.
Muitas vezes as fazendas são financiadas com dinheiros públicos, como é o caso das que estão instaladas no Rio Real, entre Bahia e Sergipe, que receberam aportes do Banco do Nordeste (BNB), com recursos do FNE Aquipesca (Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Aquicultura e Pesca do Nordeste).

As diretrizes do FNE (o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste) especificam “tratamento especial aos míni e pequenos empreendedores e preservação do meio ambiente”.

Galhofada!

Mais fácil, só sendo ministro. E prestando consultoria, claro.
JORNALISTA, MANTÉM O SITE WWW.MARSEMFIM.COM.BR

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.

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