Para o economista italiano Stefano Zamagni, um modo verdadeiramente revolucionário de conceber a economia é o de introduzir no agir econômico formas de empresa que não tenham como fim o lucro. Promove-se, assim, um “mercado pluralista”, democrático, e não apenas capitalista e ditatorial
Por: Moisés Sbardelotto e Gilberto Faggion
Reciprocidade é “dar sem perder e receber sem tirar”. Foi assim que Stefano Zamagni, economista italiano, explicou, de forma simples, um dos pilares da chamada “economia civil” em sua passagem pela Unisinos no último dia 30 de maio, a convite do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, para a conferência Economia de Comunhão e outras formas de Economia Social: Limites, Possibilidades e Perspectivas. A economia civil – conceito estudado por Zamagni há anos – é um fenômeno marcado, por exemplo, pelas empresas de economia de comunhão, pela responsabilidade social empresarial, pelas empresas sociais, pelas empresas cooperativas. Ou seja, “um modo verdadeiramente revolucionário de conceber a economia”, que “não é o de exaltar o mercado ou o Estado, mas sim o de introduzir no agir econômico formas de empresa que não tenham como fim o lucro, isto é, a maximização do lucro, e muito menos o fim especulativo”.
Nesta entrevista, concedida pessoalmente, Zamagni aborda as ideias-chave do seu pensamento, perpassando economia, história, administração, sociologia. Também fala sobre o processo de produção da encíclica Caritas in Veritate, de Bento XVI, publicada em 2009, sobre o “desenvolvimento humano integral”, da qual Zamagni foi o único leigo, em um seleto grupo de 11 estudiosos, a colaborar com o papa. E analisa ainda o fundamento mais profundo do seu pensamento: a fé católica. “Eu sempre me senti bem na fé católica porque ela dá a liberdade, a liberdade verdadeira. Digo isso, sobretudo, porque satisfaz uma exigência que eu tive desde pequeno que é a justiça, que deve ser buscada pelo caminho do amor, não da revolução. E o único lugar que me dava a possibilidade de unir justiça e fraternidade era a Igreja”. E, por último, desafia as universidades para que, a exemplo da Igreja, produzam “pensamento pensante” e não calculante: não um pensamento que apenas ajude a resolver os problemas, mas sim um pensamento que dê a direção, o saber se se deve ir “por aqui ou por lá”.
Economista italiano, Stefano Zamagni é professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e vice-diretor da sede italiana da Johns Hopkins University. Recentemente, Zamagni ganhou destaque mundial por ter sido um dos principais consultores e assessores do Papa Bento XVI na redação da encíclica Caritas in Veritate, publicada em 2009, acerca do “desenvolvimento humano integral”. Desde 2007, é presidente da Agência para as Organizações Não Lucrativas de Utilidade Social – Onlus, entidade do governo italiano responsável pelas associações sem fins lucrativos. Desde 1991, é consultor do Conselho Pontifício “Justiça e Paz”, do Vaticano. De 1999 a 2007, foi também presidente da Comissão Católica Internacional para as Migrações – ICMC. Em 2008, foi homenageado com o título de Cavaleiro-Comendador da Ordem de São Gregório Magno, uma das cinco ordens pontifícias da Igreja Católica. Em 2010, recebeu o título de doutor honoris causa em economia da Universidade Francisco de Vitoria, de Madri, Espanha. É autor de inúmeros livros, dentre os quais destacamos Microeconomia (Ed. II Mulino, 1997), Per una Nuova Teoria Economica della Cooperazione (Ed. Il Mulino, 2005) e L'Economia del Bene Comune (Ed. Città Nuova, 2007). Em português, publicou em 2010 Economia Civil: Eficiência, Equidade e Felicidade (Ed. Cidade Nova), com coautoria de Luigino Bruni.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A economia de comunhão consegue pôr em prática, efetivamente, a economia do dom, da dádiva? Ou ainda está em um estágio muito inicial em que a reciprocidade é algo ainda muito embrionário?
Stefano Zamagni – A economia de comunhão nasceu no Brasil, em São Paulo, há exatamente 20 anos, no dia 29 de maio de 1991, a partir de uma intuição de Chiara Lubich , a fundadora do Movimento dos Focolares , que, não sendo economista, teve a coragem de fazer com que se entendesse que um modo verdadeiramente revolucionário de conceber a economia não é o de exaltar o mercado ou o Estado, mas sim o de introduzir no agir econômico formas de empresa que, mesmo sendo privadas do ponto de vista jurídico, não tenham como fim o lucro, isto é, a maximização do lucro, e muito menos o fim especulativo.
Qual é a ideia que estava na base desse projeto? O de introduzir, no agir econômico, o princípio de reciprocidade, mostrando que se pode ser empreendedor e ter resultados positivos também respeitando o princípio de reciprocidade, isto é, a fraternidade. Hoje, no mundo inteiro, são cerca de 1.500 as empresas que aderiram voluntariamente a esse projeto. E essas empresas se desenvolveram em todos os países, por exemplo, nos Estados Unidos – ninguém imaginaria isso. Justamente nestes dias, tive a possibilidade de falar com uma empresa de Indianápolis, dos EUA, cujo empresário aderiu ao projeto e me disse que as coisas estão andando muito bem, do ponto de vista econômico.
Então, a primeira notícia importante é que aplicar esse cânone não lhe faz estar mal do ponto de vista econômico. Esse é o grande mérito da economia de comunhão. É verdade que são poucas [as empresas] ainda. Mas essa não é a questão. A questão é explicar aos outros que é possível ser empreendedor também sem explorar os demais. Por quê? Eis a questão. Porque se demonstra – e aqui é a teoria econômica que o demonstra – que, se em uma empresa, quem tem a sua responsabilidade adere ao princípio de reciprocidade, aumenta a sua produtividade. Por quê? Porque aumenta a sua inovação e, sobretudo, a participação daqueles que trabalham na empresa à condução dos negócios. E esse é um resultado que a teoria econômica há muito tempo havia demonstrado, mas que ninguém havia traduzido para a prática. Se nas empresas de tipo especulativo você, empresário, deve gastar tanto dinheiro no monitoramento e sobretudo para obter resultados que vão além da ordinariedade, deve lhes dar incentivos. Mas, como a crise mostrou, dando incentivos se produzem desastres. Eis porque as empresas de economia de comunhão, mesmo não explorando ninguém, mesmo não fazendo corrupção, mesmo pagando todos os impostos, têm resultados positivos, porque existe a compensação, por parte dos funcionários, que colaboram e, portanto, dão o melhor de si mesmos.
Para concluir, se você trata bem a uma pessoa, essa pessoa lhe será recíproca desse bem. Ao contrário, nas empresas tradicionais, pensa-se em obter dos funcionários uma certa disciplina com o chicote, e o resultado é que eles procurarão boicotar ou evitar os requisitos e demandas do empresário.
IHU On-Line – E as empresas que fazem aquilo que se chama de “responsabilidade social empresarial” seriam também uma forma de economia civil ou de comunhão, ou não?
Stefano Zamagni – A responsabilidade social da empresa – que em inglês é corporate social responsibility – nasceu nos EUA em 1954, quando um economista norte-americano, chamado Robert Bowen, escreveu um artigo em que usou essa expressão. Nos primeiros 10 ou 15 anos, esse autor foi ridicularizado, particularmente por Milton Friedman . Mas, depois, tornou-se uma marca difundida em todo o mundo, com nomes diversos – em italiano se diz responsabilità sociale d'impresa. O que demonstra esse fenômeno? Demonstra que a análise baseada na teoria da economia civil, a que nós estamos levando adiante, é verdadeira. Por quê? Porque quer dizer que até o mundo da empresa capitalista tradicional entendeu que há uma responsabilidade social da empresa e não apenas uma responsabilidade legal ou individual.
Essa é a melhor confirmação de que, se até nesse mundo consegue-se compreender essa necessidade e urgência, com maior razão têm valor expressões como a da economia de comunhão ou das empresas cooperativas que estão nascendo em todo o mundo. Nos EUA, são, de fato, 2 milhões de cooperativas. A empresa cooperativa não é especulativa e não tem fins lucrativos.
Estamos diante de uma realidade na qual as tipologias de empresa estão se multiplicando. A última, nascida na Europa, é a empresa social – em inglês, social enterprise – que foi avalizada por uma deliberação do Parlamento Europeu de Estrasburgo no dia 19 de fevereiro de 2009, votada com uma maioria de 80%. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Nessa resolução, o Parlamento Europeu, com 80% de maioria, diz que não podemos seguir em frente só com as empresas de tipo capitalista. Precisamos dar força às empresas sociais, as social enterprises. Isto é, empresas que não têm fins lucrativos, mas têm outros fins a serem alcançados. Portanto, o Parlamento Europeu pediu aos 27 governos da Europa que adaptem a legislação e as regras da concorrência para permitir que as empresas sociais alcem voo. E essa é uma grande novidade.
E o que há na base de todos esses fenômenos – empresas de comunhão, responsabilidade social da empresa, empresas sociais, empresas cooperativas? A conclusão desse discurso é que precisamos tornar o mercado pluralista. Isto é, a analogia é com aquilo que ocorre na política: na esfera política, se você tiver um só partido, pode haver a democracia? Há a ditadura. Ocorre a mesma coisa na área econômica: se houver um só tipo de empresa – a empresa capitalista –, você não pode dizer que há democracia econômica, porque há um único tipo de empresa. Essa é, hoje, uma grande descoberta que só certos professores de economia que não têm cultura não conseguem compreender. Atenção, porém: não se está dizendo que as empresas devem desaparecer. Não, ninguém diz isso. Os marxistas diziam isso. Aqui, ao invés, devemos pensar em uma economia como um mar, no qual nadam diversos tipos de peixes. E então a organização institucional – o Estado, os parlamentos etc. – devem adaptar as leis para permitir esse pluralismo.
IHU On-Line – Na própria economia de comunhão, ainda se vê, de um lado, uma pessoa que possui os meios de produção, e, de outro lado, os empregados, que não possuem esses meios. Chegará um ponto em que a propriedade também será comum nas empresas de economia de comunhão?
Stefano Zamagni – O ponto é este: a ideia de base da economia de comunhão é o de traduzir, na prática e em princípio, a fraternidade. Ora, é claro que, na fase inicial, se você quiser dar à empresa de comunhão uma forma de propriedade comum, isso não é uma exceção, porque dentro da economia de comunhão há empresas cooperativas e empresas não cooperativas, mas muitas são cooperativas. Portanto, veja que há a propriedade comum.
Naquelas que não são cooperativas, é verdade que alguns têm a propriedade, e os outros são funcionários. É verdade. Mas, atenção: na regra do projeto da economia de comunhão, diz-se que o funcionário, se o requerer, pode se tornar sócio da empresa, mas obviamente deve pôr à disposição uma parte do seu capital. Nem todos estão em condição de poder pagar a cota de capital, mas também não são excluídos. Não é como nas outras empresas que, sendo cotadas na bolsa, estão sujeitas à especulação.
Em segundo lugar, os funcionários são tornados partícipes do processo decisório. Essa é a questão. Isto é, as empresas de economia de comunhão realizam aquilo que se chama de democratic stakeholding. Portanto, vão além da responsabilidade social, porque, na responsabilidade social da empresa, ninguém fala ainda de democratic stakeholding, isto é, tornar os funcionários partícipes do processo decisório. Assim, alguém tem a propriedade, essa propriedade não lhe autoriza a excluir os funcionários das decisões estratégicas etc.
O terceiro ponto é que os lucros, ou o resultado líquido no final do ano, é dividido em três partes. Uma parte fica na empresa; outra parte é utilizada para levar ajuda aos necessitados da região; e a terceira parte é usada para fazer investimentos em capital humano, dos funcionários e de outros. Portanto, mesmo que alguns sejam proprietários, eles ficam com 1/3 do lucro.
Então, é óbvio que esse tipo de crítica é sem sentido. Primeiro, porque se fica apenas com 33%. Segundo, porque se realiza o democratic stakeholding, isto é, uma governança democrática. Terceiro, porque os funcionários, quando tiverem feito as suas economias, podem se tornar sócios da empresa.
IHU On-Line – Dom, comunhão, bem comum, solidariedade, reciprocidade, fraternidade: esses conceitos dialogam? Como? E de que forma são concretizados pela economia civil?
Stefano Zamagni – Nos estudos de economia, há dois grandes paradigmas: o paradigma da economia civil e o paradigma da economia política. Depois, havia um terceiro paradigma que é o da economia marxista que já desapareceu. E, portanto, hoje, permaneceram em cena só esses dois paradigmas. O paradigma da economia civil começa a se desenvolver em 1400 na Itália e continua até a metade de 1700. Depois, ele é superado pelo paradigma da economia política. Adam Smith , inglês, é quem batiza a economia política, mas ele conhecia a economia civil, porque havia estado em Paris por dois anos e ali havia conhecido italianos como Antonio Genovesi , o máximo representante da economia civil.
A primeira coisa a ser dita é que não há um só modo de fazer a ciência econômica. Infelizmente, todos os estudantes e professores pensam assim, porque não estudam a história. Se tivessem estudado a história da ciência econômica, saberiam que essa ciência nasce na época do humanismo – 1400 – e continua até, como disse, a metade de 1700. Muitos não sabem que a primeira cátedra universitária do mundo de economia foi instituída pela Universidade de Nápoles em 1753 e se chamava Cátedra de Economia Civil. E o primeiro catedrático foi Antonio Genovesi, que era um abade.
A pergunta que muitos se fazem é: como é possível que a economia civil tenha cedido espaço à economia política? A resposta está aqui: a revolução industrial. E onde a revolução industrial estoura? Na Inglaterra, em 1700. E Adam Smith era inglês. É óbvio que a revolução industrial põe um problema econômico novo, isto é, a acumulação de capital. Era preciso acumular capital físico, as máquinas. Por várias décadas, foi preciso realizar uma rápida acumulação de capital para permitir que as empresas adotassem os novos maquinários. Mas, para fazer isso, o que era preciso fazer? Era preciso aceitar a exploração do trabalho. Se lermos a Rerum Novarum , de Leão XIII, vemos que ela está mais à esquerda do que Marx . Isso porque as condições do trabalho eram terríveis. Na América ainda havia a escravidão. Mas por quê? Porque era preciso acumular capital para fazer funcionar as máquinas. E então a economia civil já não andava bem, porque ela falava que não era preciso explorar ninguém, falava de bem comum. Eis como aconteceu. As exigências da revolução industrial tornaram obsoleta a economia civil, porque a reciprocidade e a fraternidade não podem ser aplicadas onde há escravidão. Eis porque se considerou eliminar a palavra fraternidade, que incomoda. Como você faz para ser meu irmão se é meu escravo?
Por isso, então, que a economia política se desenvolve, porque ela não fala mais de reciprocidade, de fraternidade, e, portanto, as novas categorias permitem que a nascente burguesia decole e se desenvolva. Esse processo continua até um quarto de século atrás, porque, há um quarto século, inicia um fenômeno que se chama de globalização, mas, sobretudo, a terceira revolução industrial. E o que está acontecendo hoje, então, é que, com a nova fase histórica da globalização e da terceira revolução industrial, o paradigma da economia política está se tornando obsoleto e se está retornando à economia civil. A economia civil é como um rio cársico – que corre pela superfície, depois vai para o subsolo e depois retorna à superfície. Hoje, a economia civil está voltando ao auge porque todos se dão conta daquilo que está acontecendo com a economia política: uma crise financeira após a outra, o aumento das desigualdades, o aumento da infelicidade e assim por diante. Eis porque, nos últimos 10 ou 15 anos, palavras como reciprocidade, dom, gratuidade estão retornando aos livros e à internet.
IHU On-Line – Quais são os pontos centrais dessa outra economia, da economia civil?
Stefano Zamagni – É o de mostrar que o erro básico da economia política está em uma tese antropológica, isto é, a do homo economicus, segundo a qual todos os seres humanos são egoístas e estão interessados somente em usar a metáfora de Hobbes que dizia “mors tua, vita mea”, que quer dizer “a tua morte é a minha vida”. Ora, nós sabemos que há um percentual de agentes econômicos que são assim, é verdade, mas não todos. A maior parte não é assim. Então, o reducionismo da economia política não é aquele que diz algo errado, mas aquele que diz somente uma parte da verdade. Nós sabemos que há sujeitos que, ao invés, não são antissociais, mas são pró-sociais. Bastaria pensar em todos aqueles sujeitos econômicos que são movidos por uma motivação ideal, como, por exemplo, dizíamos antes, as empresas da economia de comunhão. Por que os empresários decidem dar dois terços do seu próprio lucro? Ninguém os obriga. Há uma escolha livre.
Eis então o ponto em questão: a microeconomia que nós desenvolvemos não diz: “Se os sujeitos econômicos são hobbesianos – isto é, seguem Hobbes, que dizia ‘homini homini lupus’, isto é, todo homem é um lobo perante outro homem –, então, vejamos o que acontece e os desdobramentos da teoria”. Depois, dissemos: “Se mudarmos a perspectiva e assumirmos que haja, ao contrário, sujeitos pró-sociais, então, estes outros serão os resultados”. Depois disso, o estudante, o estudioso é, nesse caso, livre para escolher qual é a perspectiva que mais o agrada.
Enfim, a última coisa que deve ser recordada é que a teoria econômica não é como a teoria das ciências naturais, mas tem um efeito chamado de “dupla hermenêutica” – isso é filosofia da ciência, e os economistas não sabem nada disso, são ignorantes. O que é a teoria da “dupla hermenêutica”? É que a teoria econômica, quando é explicada, estudada, sobretudo pelos jovens, muda a sua mente. Se eu lhe explico uma teoria econômica baseada na tese antropológica do egoísmo, você, depois de pouco tempo, torna-se egoísta, mesmo que não o quisesse. Aqui há uma grave responsabilidade moral dos professores, que não podem dizer: “Eu explico uma teoria”. Porque, se eu explico somente essa teoria, você, que é o meu estudante, no final, se convence, e, portanto, eu estou exercendo uma violência sobre você. Porque você, estudante, não tem a possibilidade de criticar, porque tem um pouco de medo do professor e no final se convence de que esse é o modo. Hoje, existem provas experimentais da teoria dos jogos que mostram que certos jogos feitos com os estudantes de doutorado de economia dão resultados diversos se forem feitos com os estudantes de outras matérias.
IHU On-Line – Muitos estudiosos dizem que há diversas crises: ecológica, alimentar, energética, financeira, do trabalho, e que tudo isso é uma crise ético-cultural. A economia civil seria uma possibilidade de um novo paradigma civilizacional?
Stefano Zamagni – O paradigma da economia civil libera as energias criativas das pessoas na proposição concreta de vias de solução. Nós vemos que onde esse modo de explicar a economia é executado, muda a realidade, porque os estudantes, depois de estudar essas coisas, começam a se tornar empreendedores sociais, fazem o microcrédito, a finança ética. A finança ética é uma coisa importante hoje. Ela chega aos 20% do volume mundial das transações financeiras. Trata-se de centenas de bilhões de dólares. E o comércio ecossolidário aqui entre vocês ainda é pouco, mas na Europa está muito difundido. As pessoas, as famílias, quando vão ao supermercado, compram os produtos do comércio ecossolidário.
Como dizia antes, a teoria econômica não é como a teoria física. Se eu estudo astronomia e me equivoco na minha teoria, o movimento do Sol, da Terra etc. muda? Não, porque seguem em frente segundo suas leis. Mas, na economia, se eu ensino uma teoria de um certo tipo, como disse antes, isso faz com que você se convença que esse é único modo de se comportar. Eis por que a economia civil tem uma forte capacidade de transformação, porque diz: “Você quer ser empresário capitalista? Seja. Siga em frente, ninguém lhe impede”. Mas eu tenho que dar a possibilidade a um outro que queira ser empreendedor social que o possa fazer; àquele outro que quer fazer uma cooperativa, que o possa fazer. Portanto, amplia-se a gama de possibilidades. E, assim, vai-se contra a ditadura, porque a ditadura é ter só um tipo de empresa.
Hoje, há tantas necessidades que poderiam ser resolvidas se fosse aumentada a tipologia de empresas. Porque a grande empresa capitalista não vê certas necessidades. Eis porque a economia civil tem uma forte carga operativa, porque libera as energias e, sobretudo, a fantasia.
IHU On-Line – O senhor trabalhou junto com o Papa Bento XVI na confecção da encíclica Caritas in Veritate . Como foi esse processo?
Stefano Zamagni – Eu faço parte do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” desde 1991 e, como membro desse conselho, nesses 20 anos, participei de diversas iniciativas e na produção de muitos textos. Quando João Paulo II preparou a encíclica Centesimus Annus , por meio do Pontifício Conselho, o papa me pediu que organizasse um seminário no Vaticano, com a presença do papa, com os melhores economistas em nível mundial. Eu o organizei e, no final, foi publicado um livro – traduzido em todas as línguas –, que teve um sucesso extraordinário. O papa queria saber se os princípios da Centesimus Annus eram adequados. Depois, sucessivamente, escrevi documentos sobre outros temas de matéria de economia e de sociologia do Pontifício Conselho.
Quando chegamos à Caritas in Veritate, este papa queria publicá-la em 2007 pelos 40 anos da Populorum Progressio , que havia sido publicada por Paulo VI em 1967. Então, para recordar esse evento, em 2007, ele queria justamente publicar uma nova encíclica que remontasse àquela. E, como sempre é práxis, o Pontifício Conselho “Justiça e Paz” foi encarregado no final de 2005 de preparar os materiais, isto é, um esquema de base que, depois, o papa, de tempos em tempos, olhava. Ao longo desse trabalho, evidentemente, eu, fazendo parte do Pontifício Conselho, me envolvi participando do primeiro esboço do documento. Esse primeiro esboço, depois, circulou por todas as conferências episcopais do mundo e entre um grupo selecionado de chamados “leitores” para se ter um feedback, um efeito de retroação.
Quando isso ocorreu, e já estamos em 2007, ficou evidente toda uma série de diversidades de pontos de vista, porque algumas conferências episcopais não respondem – porque não eram obrigadas a responder –, e algumas dizem de um modo, outras dizem de outro, alguns teólogos dizem de um modo, outros dizem de outro e assim por diante. Nesse ponto, para buscar colocar em harmonia, em sintonia as diversas respostas, foi constituído um grupo mais restrito de 11 pessoas presidido pelo cardeal norte-americano [William Joseph] Levada , que já era o presidente da Congregação para a Doutrina da Fé. Dessas 11 pessoas, eu era o único leigo – os outros eram três cardeais, quatro bispos e três professores de Teologia. Entre as observações, sob um pano de fundo, havia um vivaz debate, começando do título: alguns queriam que se chamasse Veritas in Caritate, outros Caritas in Veritate. E também sobre a fundamentação teológica da própria encíclica.
Ora, dois papas diferentes, em outras encíclicas, haviam declarado até Pio XI, que a teologia oficial da Igreja é a tomista, de São Tomás [de Aquino] . O então cardeal [Joseph] Ratzinger era pró-presidente da doutrina da Igreja e faz um documento em que, ao contrário, diz que não existe uma escola teológica única da Igreja. O tomismo é um grande ponto de referência, mas também há diversas escolas. Quando se tornou papa, ele fez um documento, um motu proprio, em que diz essas coisas, como que dizendo: não podemos ligar o cristianismo só ao tomismo. O tomismo merece uma grande atenção. Mas também existem a escola franciscana, a escola beneditina e também outras correntes de pensamento.
Voltando, então, à encíclica, eu tornei presentes essas coisas. Porque quem queria o título Veritas in Caritate se apoiava na linha do tomismo, porque São Tomás retoma a frase de São Paulo: “Veritas in Caritate”. E então diziam: “Nós devemos seguir isso”. E eu disse: “Não, porque o tomismo não é a única impostação teológica da Igreja”. Este papa tem, como fundamento teológico, Agostinho [de Hipona] e o franciscanismo, porque Ratzinger escreveu sua tese de doutorado, quando estava na Alemanha, sobre São Boaventura de Bagnoregio , que é o “segundo São Francisco”, o que veio depois de São Francisco e se tornou o superior-geral. Isso quer dizer que o fundamento teológico deste papa é menos tomista e mais agostiniano – de fato, o papa sempre cita Santo Agostinho e o franciscanismo.
No final, foi dito: “Apresentemos os textos ao papa e que ele escolha o que quiser para a sua encíclica”. E a escolha foi “Caritas in Veritate”. E a encíclica Caritas in Veritate, sem citá-la, retoma temas da economia civil, porque esta nasce, como disse antes, com o franciscanismo. Tendo o papa uma fundamentação teológica franciscana, quando chegou o texto com essas referências, disse: “Ah, isso me agrada muito”. Ele, não sendo um economista, não podia saber. Quando viu que existe uma teoria econômica que é a economia civil, ele disse: “É aquilo que eu esperava”. A propósito do título, que diferença existe entre Caritas in Veritate e Veritas in Caritate? A diferença é que Caritas in Veritate quer dizer afirmar o primado do bem sobre o verdadeiro. Primeiro está o bem, depois vem a verdade. Porque Deus caritas est [Deus é amor]. O Deus cristão é o Deus do bem, da caridade, não da verdade. A verdade vem depois. O que diz São João? Que a essência do Deus cristão é o amor. Porque, se tivesse dito que é a verdade, então Alá também é assim. Qual é a característica da religião cristã? O amor, a caridade. De fato, a primeira encíclica do papa é Deus caritas est. Ele não disse Deus veritas est. Eis porque a abordagem da economia civil lhe agradou muito. E isso demonstra que esse papa é verdadeiramente inteligente, porque compreende o novo. Ou seja, não é um conservador. É alguém que olha para a frente.
IHU On-Line – O senhor tem referências muito fortes e conhece muito a tradição católica. Como foi o seu percurso de fé?
Stefano Zamagni – Eu tive a sorte de sempre ser católico. A minha família era católica, e, desde pequeno, abracei, mesmo sendo criança, essa perspectiva. Digo apenas isto: aos oito anos, há 60 anos, eu venci um concurso de catequese, cujo prêmio consistia em ir a Roma e ser recebido pelo Papa Pio XII. Era um concurso internacional, por isso havia também crianças de outros países europeus. Quando fui, o Papa Pio XII, que era alguém que não falava com ninguém, que era muito severo, diferente de João Paulo II, me deu um tapinha na cara e me perguntou: “Tu gostas de Jesus?”. Eu o olhei e lhe disse: “Mas que tipo de pergunta é essa?” [risos]. E lhe respondi: “Mas é óbvio, é evidente que eu gosto de Jesus”. E naquela vez Pio XII se pôs a rir, ele que não ria com ninguém – se pôs a rir. E ele depois me disse, se despedindo: “Continua, então, sendo assim e verás”.
Depois entrei na Ação Católica, da qual me tornei dirigente, depois na Federação Universitária Católica Italiana – Fuci, e depois estive na Universidade Católica de Milão para fazer a faculdade e depois assumi toda uma série de cargos. De 1998 a 2007, fui presidente da Comissão Católica Internacional para as Migrações – ICMC, uma ONG do papa que se ocupa de migrantes e refugiados. No final desses oito anos, este papa me nomeou – eu não digo mais – Comendador-Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno , que poucos são – e geralmente ou se é Comendador ou Cavaleiro; eu sou ambos. O papa me deu todas aquelas coisas de ouro, que eu não visto nunca, porque não gosto dessas coisas. Depois entrei no Conselho de Administração do Hospital Bambino Gesù, que é o hospital do papa, em Roma, e que me deu muita satisfação.
Eu sempre me senti bem na fé católica porque – muitos pensam o contrário – dá a liberdade, porque eu sempre encontrei uma grande liberdade, a liberdade verdadeira. Isto é, a possibilidade, em qualquer momento, de dizer sim ou não, sem chantagens. Digo isso, sobretudo, porque a fé católica satisfaz uma exigência que eu tive desde pequeno que é, de um lado, a justiça – eu sempre sofri com a injustiça, porque eu venho de uma família muito pobre –, que deve ser buscada pelo caminho do amor, não da revolução. Porque muitos pensam que, para fazer justiça, é preciso negar a existência do outro. Isso nunca me agradou. Até quando eu não entendia a economia, quando eu era pequeno, eu dizia: “Não é possível que eu, para fazer justiça – e é preciso fazê-la –, esqueça que os outros são meus irmãos”. E então o único lugar que me dava a possibilidade de unir justiça e fraternidade era a Igreja, que, a partir do exemplo de Jesus, pregava exatamente essas coisas. Porque os outros âmbitos – partidos, ideologias, sistemas vários de pensamento – ou exaltavam um aspecto, ou exaltavam o outro; não conseguiam uni-los. Eis porque sempre achei natural, para mim, estar dentro deste âmbito.
IHU On-Line – E como o senhor vê a Igreja hoje, com este papa? Que futuro tem?
Stefano Zamagni – Nós sabemos que a Igreja se apoia sobre dois princípios: o princípio petrino e o princípio mariano. Essa é a grande distinção do famoso teólogo [Hans Urs] von Balthasar . Na história da igreja, há momentos em que prevaleceu o princípio petrino; em outros, o princípio mariano. João Paulo II foi um papa que fez prevalecer o princípio mariano. De fato, o pontificado de João Paulo II foi o pontificado dos movimentos. Ele deu amplo respiro a todos eles. Este papa [Bento XVI] tende a pôr maior ênfase sobre o princípio petrino, para balancear. Em outras palavras: a história da Igreja é a história dos cavalos de Platão , isto é, deve sempre manter na mesma velocidade o princípio mariano e o princípio petrino. Se, em certas fases, um cavalo vai mais rápido do que o outro, o papa intervém para ajustar. Neste momento histórico, o atual papa está balanceando sobre a frente do princípio petrino, porque, nos últimos 25 anos, o princípio mariano foi muito em frente.
Pode-se ver isso a partir de muitos sinais. Por exemplo, o último em ordem de tempo, que me agradou muito, foi quando papa disse que os seminaristas que devem se tornar padres devem estudar mais – até mesmo latim, porque ninguém mais sabe o latim, que é a língua universal da Igreja. E o que significa estudar mais? É que, nos últimos 25 anos, de modo a se ter padres, foram ordenadas pessoas que não são capazes de desenvolver um pensamento. No passado, não era assim. Quem eram os mais inteligentes? Os padres. Quem estudava mais? Eles. Agora, ao invés, é o contrário. Esse é só um exemplo. O outro se refere ao problema da mulher na Igreja.
Portanto, eu estou muito contente com este papado porque equilibra a fase precedente. Mas, na fase anterior, era necessário dar força ao princípio mariano. Eis porque João Paulo II foi um grande papa e foi beatificado. Porque, se não fosse ele, depois do Concílio, os perigos seriam muitos.
Não nos esqueçamos de Antonio Rosmini , quando, em Delle cinque piague della Santa Chiesa, pergunta: “Qual é a forma mais alta de caridade?”. Resposta: “A caridade intelectual”. Nós pensamos que a forma mais alta é servir sopa, a filantropia. A forma mais alta da caridade é quando você leva a mensagem cristã a todos, quando faz com que todos a entendam. Porque, se eu conseguir fazer com que você entenda a grandeza da mensagem cristã, você não será mais pobre, porque a pobreza dos meios, de dinheiro é a consequência, não é a causa. Jamais vi uma pessoa com fé robusta ser pobre. Nunca. E isso também o diz um empresário que se tornou santo que se chamava [José] Tovini , quando dizia: “Com a fé, os nossos filhos jamais serão pobres”. Portanto, a primeira forma de caridade é a caridade intelectual. Levar a palavra – não para recitá-la, mas para encarná-la.
Por fim, hoje, o esforço da Igreja é o de produzir pensamento pensante. A encíclica Caritas in Veritate conclui com isso. Diz: “O mundo hoje sofre a carência de pensamento”. Não diz: “Sofre a carência de recursos”, mas sim a carência de pensamento. E hoje a Igreja deve voltar a produzir pensamento, porque depois o resto vem em consequência. Mas o pensamento deve ser pensante, não calculante. Porque o pensamento calculante, aquele que nos ajuda a resolver os problemas, é pensado pelos outros. O pensamento pensante lhe dá a direção, o saber se deve ir por aqui ou por lá. Eis porque, de fato, jamais como neste momento, a Igreja é respeitada, até por quem não é cristão, porque as pessoas veem que ela é uma das poucas instituições às quais se pode pedir o pensamento pensante. Porque as universidades quase todos nós as temos – e ali está o pensamento calculante.
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Stefano Zamagni já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.
* “Eficiência e justiça não bastam para assegurar a felicidade: o valor do princípio do dom na economia, publicada na edição nº. 360 da Revista IHU On-Line, de 09-05-2011
Carta da Terra
"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)
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