Lançado recentemente, o Estudo de Baixo Carbono Brasil, coordenado pelo Banco Mundial com a participação da equipe do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), trata, principalmente, do uso de solo para agropecuária e florestas. A pesquisa fez o cálculo do investimento e custos totais por tonelada de carbono que pode ser evitado com a intensificação do uso de pastagens pela pecuária bovina e pelo restauro florestal necessário para eliminar o passivo de reserva legal, levando em conta o Código Florestal atual, sem as propostas de mudança que correm o governo.
A IHU On-Line entrevistou, por email, as ambientalistas Lúcia Ortiz e Camila Moreno, do Núcleo Amigos da Terra Brasil, sobre o tema. Elas enfatizam que “é importante avaliar criticamente o uso cada vez mais indiscriminado deste recurso que é a construção de um (ou mais) ‘cenários de referência’. No caso do estudo do Banco Mundial foi uma projeção para 2030, que cria uma projeção linear extrapolando todo o tipo de ‘tendência’ e criando um panorama de crescimento e emissões absolutamente ilusório, ignorando inclusive todas as limitações ambientais, bem como os impactos econômicos, gerados com a mudança do clima”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que vocês pensam sobre o Estudo de Baixo Carbono Brasil?
Lúcia Ortiz e Camila Moreno – Esse estudo é uma amostra da estratégia de reciclagem do discurso e da nova roupagem que velhos atores, como o Banco Mundial, rapidamente estão adotando para liderar esta transição para o que chamam de “desenvolvimento de baixo carbono”. No ano passado, uma consultoria internacional de empresas, a McKinsey & Company, também lançou seu estudo Caminhos para uma economia de baixa emissão de carbono no Brasil.
Apesar de ser um apanhado de informações para justificar os negócios que a consultoria quer promover, tiveram seus gráficos e “curvas de custo de oportunidade” amplamente utilizados por gestores e funcionários do governo para justificar a formulação de políticas públicas favorecendo as supostas “vantagens” das opções de mercado para os negócios do clima. Este estudo do Banco Mundial vem reforçar com maior peso este mesmo discurso, que trata das “oportunidades de negócios” das mudanças climáticas, onde se passa de um “cenário de referência” para outro identificado como de “baixo carbono” sem realmente colocar em questão os temas estruturais.
"O Banco Mundial, como atesta seu histórico, não é um ator legítimo para conduzir ou intermediar a transição necessária a outro modelo de sociedade."
Esta é a proposta do mercado internacional de carbono, que seria o grande pilar desta nova economia “verde” ou de “baixo carbono”. Um preço internacional para o carbono vem sendo paulatinamente introduzido no discurso econômico como uma nova variável macroeconômica. Além disso, é importante lembrar que redes e organizações internacionais que acompanham as negociações internacionais do clima já alertaram sobre os riscos do Banco Mundial vir a concentrar o gerenciamento dos fundos que estão sendo disponibilizados para o combate às mudanças climáticas e sobre a ingerência do Banco na arquitetura financeira internacional para um novo acordo sobre o clima. O Banco Mundial, como atesta seu histórico, não é um ator legítimo para conduzir ou intermediar a transição necessária a outro modelo de sociedade.
IHU On-Line – Como vocês comparam o cenário de referência e o cenário de baixo carbono apontado pelo Estudo de Baixo Carbono Brasil?
Lúcia Ortiz e Camila Moreno – É importante avaliar criticamente o uso cada vez mais indiscriminado deste recurso que é a construção de um (ou mais) “cenário de referência”. No caso do estudo do Banco Mundial, foi uma projeção para 2030, que cria uma projeção linear extrapolando todo o tipo de “tendência” e criando um panorama de crescimento e emissões absolutamente ilusório, ignorando inclusive todas as limitações ambientais, bem como os impactos econômicos, gerados com a mudança do clima.
Desde secas, inundações, pragas, por exemplo, até os casos extremos de enchentes como a vista na semana passada, no Nordeste, que destruíram cidades e infraestruturas inteiras (estradas, pontes, hospitais, cidades etc.) em questão de horas. Da mesma forma, o cenário de crescimento de emissões computa os altos investimentos (e endividamentos) do Brasil na exploração do petróleo do pré-sal, o que é absolutamente contraditório se estamos falando seriamente em uma transição para uma sociedade pós-petróleo, o que seria realmente no caminho do “baixo carbono”.
"Na criação destes cenários ilusórios, fica muito fácil justificar e precificar supostas “reduções” que não se comprovam e que não são baseadas em uma realidade alternativa concreta"
Imagine os gastos com seguros ou com as medidas de mitigação frente a um vazamento de óleo em alto mar como este da British Petroleum nos EUA? Como compatibilizar esta perspectiva com uma transição de modelo real? Na criação destes cenários ilusórios, fica muito fácil justificar e precificar supostas “reduções” que não se comprovam e que não são baseadas em uma realidade alternativa concreta. Este tipo de estudos serve para ajustar a pertinência da precificação do carbono, criando uma ilusão de que um mercado fabuloso de reduções de carbono (ou de mercadorias que comprovem que foram produzidas na forma “carbono-neutro”) é apresentado como uma nova economia, embora na prática o modelo econômico continue o mesmo.
IHU On-Line – Que relação podemos fazer entre o Estudo de Baixo Carbono Brasil e a proposta para um novo Código Florestal?
Lúcia Ortiz e Camila Moreno – As principais ações propostas pelo estudo no cenário de referência (projeção para 2030 das tendências históricas, dinâmicas e tendências atuais) são pertinentes ao maior fator de emissões de gases de efeito estufa pelo Brasil: a mudança do uso do solo (expansão da agricultura e pecuária) e do consequente desmatamento. O cenário alternativo, chamado de “baixo carbono” pelo Banco, não contesta a expansão do agronegócio, da pecuária e das monoculturas para agroenergia. Pelo contrário, parte do princípio de que estes são “motores fundamentais da economia brasileira” e trata de reforçar o crescimento continuado destes setores, tentando acomodar esta expansão no cenário de “baixo carbono” e com os compromissos ambiciosos do Brasil de redução de desmatamento (redução de 72% do desmatamento na região Amazônica até 2017, segundo o órgão Política Nacional sobre Mudança do Clima).
Se tomarmos que a “redução” do desmatamento verificada com relação à “tendência histórica” do período entre 1996-2005, vemos que foi uma redução do desmatamento que, na sua quase totalidade, era ilegal. Assim, é comum ver, na utilização de modelagens sofisticadas e construção de cenários, o não cumprimento da legislação ambiental – a ilegalidade – transformada em item do cenário “business as usual”, onde a ilegalidade é computada como uma situação “de fato” e renomeada, transformada em um “passivo ambiental”. Assim, no “cenário de legalidade”, proposto pelo estudo do Banco Mundial e viabilizado no cenário de “baixo carbono”, a mudança de atitude/comportamento tem um “custo de oportunidade”, ou seja, quanto deverá ser pago ao produtor para cumprir a lei. Esta é uma nova lógica econômica para a conservação do meio ambiente – vamos aceitar isso como sociedade?
É interessante que o estudo recomende – tendo em vista a possível não aprovação das mudanças propostas ao Código Florestal – o subsídio por parte do estado brasileiro a fim de dar condições para o cumprimento da legislação florestal vigente. O que é, há muito tempo, demandado tanto por pequenos como por grandes produtores que supostamente seriam beneficiados pelos mercados de carbono.
O estudo aponta que a intensificação da pecuária seria viável vendendo os créditos da redução de emissões em um mercado de carbono que pagasse ao menos US$ 1,47 a tonelada de CO2 equivalente, um aporte considerado suficiente para estimular os agentes privados a investir na intensificação da pecuária. Já para a restauração florestal (se estamos idealmente falando em recomposição com espécies nativas e biodiversas) o custo seria estimado em cerca de US$ 50 a tonelada de carbono equivalente, o que só seria possível com subsídio público, já que o “mercado” quer mesmo é créditos baratos, e não financiar soluções reais por um preço justo.
As vantagens deste ambiente de negócios se destinam a agregar valor aos grandes produtores que utilizam estes pacotes altamente tecnificados do agronegócio, com foco particular na modernização da pecuária, ironicamente o grande vetor responsável historicamente pelo desmatamento da Amazônia.
IHU On-Line – O plano de desmatamento zero é viável?
Lúcia Ortiz e Camila Moreno – O tom do estudo reforça que, com “ajustes tecnológicos” que reduzem as emissões (tais como plantio direto, intensificação e confinamento do gado, melhoria genética dos plantéis etc.), o agronegócio e a pecuária poderão crescer ainda mais. Isso se somando ainda às oportunidades de “redução” de emissões com a ampliação do uso do etanol e biodiesel (ou seja, mais monoculturas de cana-de-açúcar e a crescente palma africana/dendê), assim como as vastas oportunidades para os negócios de “reflorestamento”, tanto da reserva legal e das áreas de preservação permanente como de pastagens degradadas.
O estudo não indica, em nenhum momento, uma reorientação ou reversão verdadeira do modelo de desenvolvimento para parar o desmatamento, mas enfoca em tendências de aumento do desmatamento que podem ser “reduzidas”. E inclui a “compensação” com o plantio de florestas comerciais ou florestas de produção, especialmente para produção de “carvão vegetal renovável” para o aço e ferro “verdes”, como eles chamam.
Monoculturas de árvores não são florestas e não podemos admitir que a expansão de mais esta frente do agronegócio, com todos os seus impactos sociais e ambientais tão denunciados, seja agora computada como redução do desmatamento. Sem rever a política de exportação de commodities, a desenfreada expansão de infraestruturas na Amazônia (estradas, hidrelétricas, hidrovias etc.) e este modelo extrativo de recursos, não pode haver um real desmatamento zero.
IHU On-Line – O Brasil pode realmente reduzir em 37%, como diz o estudo, suas emissões poluentes sem prejudicar o desenvolvimento?
Lúcia Ortiz e Camila Moreno – Este é o cerne do debate, devemos discutir e qualificar o que estamos considerando como “desenvolvimento”, para além de renovar esta mesma e cansada ideologia que já se mostrou tão destrutiva do “crescer pelo crescer”. Qual o Brasil que queremos? Há um risco muito grande neste reducionismo brutal da questão ambiental e climática à redução das emissões de dióxido de carbono, pois as inter-relações que afetam os ecossistemas são muito mais complexas e imprevisíveis, assim como a poluição.
A motivação deste tipo de estudo que se apresenta como contribuição “técnica” ao debate é ir naturalizando várias questões que, na verdade, são grandes debates políticos, onde o Banco, ou outros atores econômicos interessados, vão criando um substrato de cenários comparativos, e apresentando curvas de custo de oportunidade para subsidiar a tomada de decisões e orientar as opções para os países.
Isto é grave porque não abre espaço para um debate profundo sobre alternativas e para enfrentar o dogma do desenvolvimento e de como as políticas desenvolvimentistas são causa de exclusão social e degradação ambiental, especialmente na América Latina. É urgente implementar uma transição real para uma sociedade pós-petróleo, com a construção da soberania energética e alimentar nos territórios, relocalizando a economia e racionalizando a produção, o transporte de produtos e o consumo de energia para uma economia de mercados locais e regionais, verdadeiramente resiliente para o enfrentamento da crise climática.
Nas negociações internacionais sobre o clima hoje o que se vê é justamente a disputa pela definição dos novos negócios criados com a questão climática e como o financiamento para mitigação e adaptação deve também servir para impulsionar o desenvolvimento e garantir novos mercados (como de energias ditas renováveis). O estudo do Banco Mundial tem este tom constante de reiterar as soluções de mercado e da iniciativa privada. No cenário de negócios da economia do baixo carbono, a degradação ambiental e a questão das mudanças climáticas são mais uma oportunidade de negócios para o próprio sistema, e o receituário é aceitar e expandir o alcance das soluções e da lógica de mercado, até para garantir o ar puro que se vai respirar.
IHU On-Line – Que políticas do governo já estão dando resultado e onde é preciso avançar ainda?
Lúcia Ortiz e Camila Moreno – É preciso retroceder com urgência, na verdade. Deter os planos de construir Belo Monte e outras grandes obras de infraestrutura e energia na Amazônia. Precisamos discutir o uso do pré-sal em um processo de transição para uma sociedade pós-petróleo, redimensionar as expectativas da agroenergia somente para o mercado nacional e em acordo com uma redução do transporte individual e do fomento ao transporte coletivo etc.
Muito importante também é parar agora, antes que seja tarde demais, com qualquer política que favoreça a substituição de florestas nativas e outros ecossistemas por plantações de árvores exóticas, o que é uma tônica dominante nos cinco eixos principais do plano nacional de mudanças climáticas. Os desastres recentes têm mostrado o quanto o Brasil está despreparado e ainda não tem colocado o mesmo peso político às medidas de adaptação.
No tema do uso do solo e florestas, deve-se avançar na restauração de ecossistemas reconhecendo o papel das comunidades tradicionais, camponesas e dos povos indígenas, com políticas públicas de financiamento, de fomento e assistência técnica para o cumprimento do Código Florestal como está. É preciso garantir o direito coletivo e constitucional ao meio ambiente sadio e equilibrado, bem como ao manejo florestal comunitário, a coleta e distribuição de sementes nativas.
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