Se a maioria dos adultos encontra-se despreparada para enfrentar os apelos do consumismo, nesses tempos de globalização econômica e cultural e de assédio de mídias poderosas, como crianças e adolescentes haverão de fazê-lo?
Na tese de doutorado intitulada “Procedimentos utilizados pelas famílias na educação econômica de seus filhos”, a autora Valéria Cantelli procura lançar luz sobre o problema.
“Os tempos estão difíceis para as famílias, pois os valores se relativizam e, em muitos lares, ter parece mais relevante do que ser. É importante refletir sobre como enfrentar as pressões da sociedade de consumo”.
A educação econômica é um novo campo na área do conhecimento social, com estudos pioneiros desenvolvidos no país por pesquisadores da Faculdade de Educação da Unicamp. Esses pesquisadores atuam no Laboratório de Psicologia Genética (LPG), sob a coordenação da professora Orly Zucatto Mantovani de Assis, orientadora desta tese de doutorado e de outros estudos realizados sobre o tema (veja texto nesta página). “Há muitos trabalhos nas áreas de marketing, publicidade, economia, mas poucos no âmbito da educação e da psicologia”, informa Valéria Cantelli.
A autora explica que a pesquisa foi realizada em uma amostra com 270 famílias de uma cidade da Região Metropolitana de Campinas, com pelo menos um filho em idades entre 3 e 16 anos. “Procurei equilibrar os grupos em relação aos estratos socioeconômicos (baixo, médio e alto) e à constituição familiar: biparental (a tradicional, com ambos os pais vivendo no lar), monoparental (no caso deste estudo, apenas com a mãe assumindo o cuidado dos filhos) e recomposta (de uma nova união, na qual existam filhos de um vínculo anterior). A coleta de dados ocorreu a partir de um questionário criado exclusivamente para este trabalho”.
Dentre os principais achados do estudo, Valéria Cantelli destaca que as famílias, no geral, acreditam que a educação econômica deva fazer parte da formação das crianças, mas não promovem ações sistemáticas para fomentar hábitos e condutas adequadas para o consumo. “O comportamento dos pais e seus procedimentos para educar os filhos nessa questão são intuitivos e não planejados. É pequeno o número de famílias que adotam condutas simples como elaborar uma lista de compras, registrar as despesas do dia e utilizar a mesada como forma de entrega de dinheiro para os filhos”.
A autora acrescenta que as crianças ouvem sobre a importância de controlar o dinheiro e de poupar, mas presenciam, cotidianamente, os adultos realizando compras impulsivas, recorrendo frequentemente ao cartão de crédito e ao cheque pré-datado. “Observa-se ainda a ausência de práticas voluntárias de poupança e economia doméstica. Essas condutas refletem a distância entre o que os pais dizem fazer e o modelo que oferecem para a educação dos filhos”.
De acordo com a pesquisadora, ainda que as famílias implementem ações de forma espontânea, como respostas às demandas dos filhos, o nível socioeconômico apareceu como a variável de maior diferenciação entre os grupos. “As famílias de estrato alto se destacam por maior sistematização do planejamento, além de ser mais disseminada entre elas a adoção da mesada. Ainda assim, é comum darem mais dinheiro aos filhos ao longo do mês, atendendo a outras solicitações. A mesada não é uma forma de ensinar a administrar o dinheiro, tomar decisões sobre os gastos e se planejar para atingir objetivos futuros”.
Chamou a atenção de Valéria Cantelli o número expressivo de famílias, em todos os níveis, que disponibilizam dinheiro ou fazem compras para os filhos sempre que pedem. A prerrogativa de atender prontamente às solicitações das crianças também demonstra a dificuldade em proporcionar o aprendizado da escolha, ensinado-as a diferenciar o essencial do supérfluo. “Para os pais de maior nível socioeconômico, esta é uma forma de se fazerem presentes diante do pouco tempo que passam com os filhos; já os de menor nível, não querem que as crianças passem por privações e procuram proporcionar para elas as oportunidades que não tiveram”.
Poupança
Outro dado interessante é o pequeno número de famílias preocupadas em controlar as despesas domésticas e realizar práticas voluntárias de poupança, embora todas queiram que os filhos aprendam a poupar. “O cofrinho de moedas e a caderneta de poupança, por exemplo, visam à educação dos filhos, mas mesmo essas ações não chegam a assumir um caráter pedagógico: as crianças não participam de etapas importantes deste processo, como registrar as entradas ou doações, acompanhar a ida ao banco e conversar sobre a regularidade e o objetivo dos depósitos – ações que fazem parte da dinâmica de socialização e resultam em uma maior educação econômica”.
A pesquisadora atenta inclusive para um movimento contrário, provocado pelo acesso fácil ao crédito e pelo conceito de felicidade ligada ao consumo. “Percebe-se atualmente certa banalização da dívida nos vários grupos sociais, principalmente na classe média, onde as famílias não veem como algo ruim a ideia de comprar agora e pagar depois. É a saída que esses pais encontram diante da pressão no contexto social e da publicidade para que consigam satisfazer imediatamente os próprios desejos e os dos filhos”.
Valéria Cantelli lembra que os pais de hoje foram criados num período em que a inflação no Brasil tornava impossível qualquer planejamento. “Eles não foram preparados para lidar de forma mais inteligente com o dinheiro e muitos se sentem despreparados para ensinar os filhos a enfrentar os apelos do consumismo. Isso resulta em uma lacuna preocupante na formação das novas gerações, que extrapola o âmbito econômico e alcança uma dimensão ética: ao vincular a felicidade à aquisição bens, o modelo social atual atrela a construção da identidade de crianças e jovens à ideia de que para ser, precisam ter”.
Mãe sozinha
Com relação à variável da estrutura familiar, a autora encontrou em lares chefiados por mães um maior envolvimento dos filhos no planejamento do orçamento e uma análise sistemática da situação financeira antes das compras. “O uso menos frequente de cheques pré-datado ou cartão de crédito na família monoparental indica melhor controle dos gastos. Este elemento deve ser destacado, pois a conduta do responsável direto pela criança serve de referência para a formação de hábitos mais equilibrados em relação ao consumo”.
No caso de pais que estão vivendo uma segunda união, a pesquisa aponta que este grupo vê como prioritária o ensino de práticas de economia e poupança para os filhos. “Há uma forte preocupação em ensinar hábitos de economia e poupança como forma de ajudá-los a usar de forma responsável o dinheiro. O diálogo e as negociações estão presentes e revelam a opção por práticas educativas mais coerentes com um estilo democrático de criação dos filhos”.
Valéria Cantelli, afinal, defende o resgate de comportamentos mais austeros como forma de enfrentar os tempos de consumismo. “Assumir uma postura mais racional pode nos ajudar a educar a vontade de consumo. Os pais não devem ceder. Devem ensinar a criança a diferenciar o que compramos por necessidade e o que compramos porque queremos; ensinar a esperar para ganhar um presente. São importantes aprendizagens que devemos ajudar a criança a realizar”.
Linha de pesquisa já rendeu quatro teses
A pesquisadora Valéria Cantelli afirma que a educação econômica já aparece nos programas curriculares de escolas européias e americanas, mas no Brasil existem apenas iniciativas isoladas, notadamente em unidades particulares. “Os parâmetros curriculares nacionais trazem abertura para a introdução da educação para o consumo como tema transversal, mas não se observa a consolidação deste trabalho nas escolas”.
Para a pesquisadora, os professores também não se acham preparados para atender a esta demanda, visto que muitas das suas condutas ligadas ao mundo econômico foram construídas informalmente, além de apresentarem baixo nível de alfabetização nesta matéria, como ficou demonstrado em outras pesquisas do Laboratório de Psicologia Genética. “A educação econômica não pode ser tratada como um conteúdo curricular isolado. O mundo econômico é um dos pilares da vida social e, por isso, precisa de um tratamento interdisciplinar, englobando crenças, valores e hábitos do indivíduo e do meio em que ele está inserido”.
Os vários trabalhos da linha de pesquisa coordenada pela professora Orly Mantovani de Assis estão fundamentados nos estudos da pesquisadora chilena Marianela Denegri Coria, da Universidade de Temuco (Chile). “A professora Denegri está envolvida com o tema há mais de uma década e colabora com as investigações do nosso laboratório. Seus estudos têm servido de referência para muitos dos trabalhos que vêm sendo realizados aqui no Brasil”.
Além da pesquisa de Valéria Cantelli – “Procedimentos utilizados pelas famílias para a educação econômica de seus filhos” (2009) –, foram defendidas pelo grupo do LPG mais três teses de doutorado e outras duas encontram-se em andamento. A primeira foi defendida em 2007 por Regina Araújo, que investigou o desenvolvimento do pensamento econômico em crianças de 3ª e 4ª séries do ensino fundamental. Em 2008, Sonia Bessa da Silva verificou o nível de alfabetização econômica de estudantes de pedagogia, e também propôs um programa de formação que permitissem aos futuros professores trabalhar o tema com as crianças.
No último mês de agosto, Maria Fernanda Ortiz defendeu a tese “Educação para o consumo: diagnóstico da compreensão do mundo econômico do aluno da educação de jovens e adultos”. Há mais dois trabalhos em andamento, ambos também de doutorado, cujos resultados serão conhecidos no início de 2010: um sobre os hábitos familiares, de consumo e culturais de crianças e pré-adolescentes, e outro relacionando consumo e meio ambiente.
Valéria Cantelli informa que o grupo de pesquisas em educação econômica está para ser formalizado. “Nosso compromisso, além de abrir essa linha de investigação, é com a composição de um banco de dados que possa subsidiar as práticas de pais e professores na organização de ações educativas. O objetivo último é contribuir para que as crianças desenvolvam noções econômicas básicas, permitindo a elas se situar diante da sociedade de consumo como pessoas conscientes, críticas, responsáveis e solidárias”.
Artigo de Luis Fujimoto, Jornal da UNICAMP.
Carta da Terra
"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)
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