Carta de índios da comunidade Pyelito Kue foi interpretada como uma suposta ameaça de suicídio coletivo
Foto: Katia Carvalho/Futura Press
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Stéfano Santagada
- A recente divulgação de uma carta de índios Guarani-Kaiowás, interpretada como ameaça de suicídio em massa, não foi a primeira polêmica envolvendo representantes da tribo. Antes de publicar em redes sociais o texto que cita a "morte coletiva" dos índios diante de uma suposta determinação judicial para que deixem uma área no Mato Grosso do Sul, os Kaiowás integraram protestos em outros estados brasileiros. Na semana passada, os indígenas estiveram em São Paulo e Altamira (PA) - a cerca de 3 mil km do Mato Grosso do Sul -, protestando contra a construção da Usina de Belo Monte. No último dia 19, participaram de ato na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em favor dos povos indígenas brasileiros.
O coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Estado, Flávio Vicente Machado, afirma que existem "redes de articulação" entre lideranças indígenas para a organização destes atos. Segundo ele, os deslocamentos são custeados com recursos próprios e, em alguns casos, pelos organizadores dos eventos.
A mais recente e reverberante manifestação pública foi contra a reintegração de posse de uma área ocupada pelos Kaiowás em Iguatemi (a 450 km de Campo Grande), disputada com fazendeiros desde 2002. Na carta, eles afirmaram que o despejo dos moradores da aldeia significaria decretar a morte dos 170 índios, incluindo 70 crianças.
O anúncio da liminar foi feito na semana passada, mas na última sexta-feira, a Justiça sul-matogrossense esclareceu que a liminar é para a manutenção da posse, e não reintegração. Ou seja, os índios podem permanecer na área enquanto a questão não é resolvida.
A situação, no entanto, chamou atenção para conflitos envolvendo a etnia Guarani-Kaiowás, o segundo maior agrupamento indígena do Brasil. Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), são cerca de 45 mil pessoas da etnia espalhadas em pequenas áreas, principalmente, no sul do Estado de Mato Grosso do Sul.
De acordo com a Funai, a disputa em Pyelito Kue "não é um caso isolado". "Comunidades Gurani-Kaiowá de toda a região enfrentam graves problemas e ameaças à vida", diz a entidade, em nota.
Para Flávio Vicente Machado, os constantes conflitos por terra entre índios e fazendeiros têm provocado o aumento da violência nas comunidades. "A situação chegou a esse ponto devido à omissão do Estado brasileiro. A carta (da comunidade Pyelito Kue) traz o anseio de todo um povo, um povo que está sendo assassinado pela omissão do governo", diz. "Os algozes dos índios estão no Mato Grosso do Sul e em Brasília", conclui.
Conforme o Cimi, estudos comprovam que a etnia viveu na região até a década de 1920, quando a expansão agrícola começou a expulsar os índios do local. O processo se acentuou há cerca de 40 anos, com a introdução das lavouras de soja na localidade. "Há farta documentação que comprova a ocupação histórica dessa região pelos Kaiowás", defende Machado.
Para ele, desde então, houve um "confinamento" de índios em pequenas comunidades. Segundo o coordenador, a retomada das terras pelas comunidades indígenas se iniciou apenas na década de 1980. A partir daí, contudo, ocorreu um forte aumento no número de assassinatos de lideranças e conflitos entre índios e agricultores.
"O Mato Grosso do Sul é rico, e a nossa situação é de violência e precariedade. Estamos apenas lutando pelo nosso direito. O nosso futuro está na nossa terra e o governo tem que respeitar o nosso espaço. É para isso que lutamos", afirma o vereador Otoniel Ricardo (PT), da cidade de Caarapó (MS), membro do conselho da Aty Guasu, que representa os Guarani-Kaiowás.
Em manifesto publicado pelas redes sociais, a Aty Guasu afirma que a etnia se encontra em processo de "genocídio". "Esses fatos levam os índios ao estado de desespero e medo. Por isso, pensam em resistir e reagir, para morrer todos juntos", disse o grupo.
Suicídios
Diante da repercussão da carta da comunidade Pyelito Kue, entidades e lideranças indígenas negaram que o texto anuncie um "suicídio coletivo" no local. Segundo o vereador Otoniel, a mensagem foi mal interpretada pela população. "Não é verdade. Isso não vai acontecer. Suicídio é um tema muito pesado para nós", disse.
Em comunicado, a Aty Guasu também refutou os rumores. "Os Kaiowás falam em morte coletiva no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nela, sem jamais abandoná-las".
A despeito das negativas, os suicídios têm se tornado prática comum nas comunidades Kaiowás. Segundo dados do Cimi, a cada semana um jovem da etnia tira a própria vida - nas últimas três décadas foram mais de 1,5 mil casos. Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado em 2010 afirma que a taxa de mortes do tipo entre Kaiowás foi 19 vezes maior que a média nacional na década passada. A maioria dos casos ocorreu entre jovens na faixa dos 15 aos 29 anos.
Mesmo com o alto índice, o coordenador do Cimi na região afirma que o suicídio não é uma característica do grupo indígena. "Não é cultural, não há registros disso na antropologia", diz. Segundo ele, os casos são uma consequência da "falta de perspectiva de se viver no próprio território".
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