Por Claudia Safatle
Valor
Unanimidade ele nunca foi. Mas é impossível ser indiferente a esse personagem que desde 1967 participa ativamente da vida econômica e política do país.
Antônio Delfim Netto, 84 anos, é um homem que se reinventou. Foi ministro nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo e é um dos principais conselheiros dos governos da era PT.
Inimigos ele afirma que não tem.
"Nunca tive nenhum. Os economistas com quem trabalhei continuam grandes amigos. Tem pessoas com quem eu tenho outra relação, mas não de inimizade. E há alguns que pretendem que eu seja inimigo. Mas eu não..." Críticos, sim.
Ele minimiza: "São divergências no campo profissional".
Discretíssimo na vida pessoal, Delfim escondeu os 18 dias de coma e os 60 dias que passou internado no Incor (SP), há um ano e meio, com embolia pulmonar e um problema cardíaco que lhe rendeu dois 'stents' e quatro meses de ausência de suas atividades cotidianas.
"Tenho uma grande confiança na dialética entre a urna e o mercado. [Se] a urna exagera nos benefícios, o mercado vem e pune. [Se] o mercado exagera, vem a urna e pune"
"Foi um negócio terrível!", diz. Do coma, brinca: "Não vi o tal túnel com a luz branca. Foi uma decepção!".
Este "À Mesa com o Valor" começa por volta das 11 horas no escritório do ex-ministro e se estende, almoço adentro, até as 14h30 na cantina Roma, na rua Maranhão, em Higienópolis. Delfim criou a Consultoria Ideias quando saiu do governo, em março de 1985.
É uma agradável casa de dois andares, próxima ao estádio do Pacaembu, de decoração espartana. Nas paredes da sala onde trabalha há uma coleção de caricaturas suas, publicadas nos jornais quando era ministro. Os cartunistas costumavam chamá-lo de "O Gordo".
Totalmente avesso a exercícios físicos, Delfim diz que, após a doença, recebeu dos médicos a recomendação para fazer dieta e ginástica, a mesma orientação que havia recebido nos anos 60 do século passado para tratar de uma gota que o acompanha desde os 33 anos. Até então, tudo que Delfim havia feito fora na infância. "Quando menino, eu remava no rio Tietê", conta.
Em 1967, já ministro da Fazenda, ele até que tentou voltar a remar, por prescrição médica. Comprou o equipamento e o levou para o apartamento, em Copacabana.
"No segundo movimento do remo, começaram a cair sobre mim as contas do balanço de pagamentos. No momento em que eu estava usando só as mãos, os problemas brotavam na minha cabeça".
Delfim (no centro) e os assessores que levou de São Paulo para o Ministério da Fazenda, no Rio, em março de 1967, um dia antes da posse.
"Se eu tivesse continuado a fazer exercício, ia ter um stress de louco."
Para Delfim, 1967 foi um ano particularmente difícil. Aos 39 anos, ele chega ao Rio para assumir o Ministério da Fazenda (que, na época, funcionava principalmente na ex-capital da República), a convite do presidente Costa e Silva. A ideia disseminada na elite carioca, conta ele, era que "aquele paulista caipira não aguentaria até o fim do ano". O primeiro grande teste foi em maio, mês em que venciam 100 milhões de ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional).
"Diziam que eu não conseguiria rolar essa dívida e cairia ali mesmo." Passou maio, junho, agosto e a dívida pública foi sendo rolada pelo mercado.
"Eu sempre tive bons amigos no mercado."
Essa proximidade também lhe custou dissabores.
"Diziam, por exemplo, que eu era sócio do Bradesco, né? Diziam que eu era sócio do Geraldo Bordon (do frigorífico Bordon). Diziam que eu era sócio de uma porção de gente", fala o ex-ministro.
Banqueiros como Amador Aguiar, Gastão Vidigal, Moreira Salles "sempre foram extremamente cooperativos com o governo. Se o governo queria baixar a taxa de juros, conversava com eles e o que a gente prometia, cumpria".
Neto de imigrantes italianos, Antônio Delfim Netto nasceu e cresceu no Cambuci, bairro operário de São Paulo. Dona Maria Delfim, sua mãe, costurava para fora. "E eu ganhava um dinheirinho entregando os vestidos." O pai, José Delfim, trabalhava na CMTC, empresa de transportes da prefeitura de São Paulo.
"O Samuelson fez a maior sacanagem com os economistas. Antes de morrer, deixou um recado: 'A economia nunca foi uma ciência e nunca será'"
Tem duas irmãs mais novas, Filomena (nome da avó) e Terezinha, uma porção de sobrinhos e, agora, o neto Rafael, de um ano e meio, filho de sua única filha, Fabiana. O nome da filha remete à juventude, quando, segundo conta, era socialista fabiano, reformista, corrente que, afirma hoje, "trazia um equívoco fundamental, no qual eu também acreditava: de que o Estado deveria ser proprietário dos meios de produção".
Foi a leitura da "Teoria dos Preços", de George Stigler, que o fez mudar de ideia.
Delfim foi avô aos 83 anos. "É uma experiência absolutamente extraordinária! Sublime! A última coisa que eu podia pensar na minha vida. Isso me diverte mesmo!". Para ficarem próximos, a filha está morando no mesmo prédio que ele. "Eu moro no 6º andar e eles no 14º". Sobre uma mesa lateral, na sua sala, há uma única foto, dele com o neto no colo.
"Passei uma infância muito gostosa", diz. Fez o curso primário num grupo escolar e contabilidade na Escola Técnica Carlos de Carvalho. O sonho era engenharia, mas o dinheiro da família era curto para um curso puxado, que não lhe permitiria trabalhar meio período. Optou por economia na Universidade de São Paulo. Era a terceira turma da FEA - Faculdade de Economia e Administração da USP. Chegou, por concurso, a professor catedrático em 1963, responsável pelas disciplinas análise macroeconômica, contabilidade nacional, teoria do desenvolvimento econômico, economia brasileira e planejamento governamental. Foi o primeiro aluno da FEA a tornar-se um de seus catedráticos e da escola só se desligou para se aposentar.
"É uma coisa fantástica. Eu gastei 6 mil réis com um selinho para, depois, viver a vida inteira na universidade", conta. O selo era colado no título de admissão. "Aquilo garantiu a minha vida." Provavelmente, esteja aí o início da profunda ligação do ex-ministro da Fazenda, da Agricultura, do Planejamento e do deputado federal por cinco mandatos consecutivos, com o Estado.
Em retribuição, Delfim doou à USP sua biblioteca de quase 300 mil títulos de economia, matemática, história, geografia, antropologia e estatística.
"Me dá vontade de dar risada quando alguém diz: 'Mas vejam! É um absurdo esse negócio de educação e saúde gratuitos!'. Você até pode discutir se quer cobrar mais de um sujeito ou de outro. Mas a antropologia ensina: o macaco virou homem pelo conhecimento; e o homem só ganha a humanidade se tiver saúde".
Antropologia é o "hobby" do economista. Dos tempos em que era jovem e frequentava um boteco na avenida Angélica, do seu amigo Horácio Coimbra, e bebericava com Paulo Vanzolini e Luís Carlos Paraná, restaram boas lembranças. "O primeiro disco que o Carlos Paraná gravou foi financiado pelo Café Cacique, do Horácio", recorda.
Boêmio mesmo, nunca foi. "Sempre gostei de estudar." É o que mais gosta de fazer ainda hoje.
Por quase quatro horas, Delfim falou com entusiasmo sobre os mais variados temas. A crise na Europa, a origem do homem, religiosidade, a democracia e os bons tempos em que estudou na USP.
"O que mais me fascina é a origem do homem. Antropologia é a única coisa que leio fora da economia. Sou um amador, me entende? Mas tenho algumas convicções sobre por que o homem está aqui."
Tem grande admiração pela parte antropológica da obra de Karl Marx.
"O homem é um animal que produz trabalho, como a abelha faz o mel. Suas mãos produzem você, e o seu cérebro é produzido pelas suas mãos."
O homem saiu da África há 150 mil anos e se dividiu dessa forma porque "somos animais territoriais; isso aqui é meu e ninguém mexe". Para os economistas, diz, é fundamental o entendimento de que o ser humano é muito mais complexo do que os modelos que eles usam.
O assunto anima Delfim. "Na minha opinião, tem duas teorias absolutamente fantásticas: o darwinismo e a física quântica. O Darwin a gente está começando a entender do que se trata; a física quântica dá certo, mas ninguém sabe por quê".
Max Planck, prêmio Nobel de física em 1918, dizia: A física quântica ninguém sabe o que é, mas funciona. A economia, todo mundo sabe o que é, mas não funciona.
- Na sua visão, de onde viemos?
-"Somos a natureza tentando saber quem ela é.
- E para onde vamos?
- Aí é uma coisa hegeliana. É mais complicado...
- O senhor acha que há vida após a morte?
- Não sei. Mas acredito que tem alguma coisa que controla o mundo. Tenho minha própria religiosidade e acho que é uma ligação que não tem nada que ver com o racional. Eu gosto desse ponto de vista, acho que dá conforto.
Ele retoma a questão do processo civilizatório e conclui que a evolução é rumo a uma sociedade republicana, democrática.
"Tenho uma grande confiança na dialética entre a urna e o mercado. Cada vez que a urna exagera nos benefícios, o mercado vem e pune. E cada vez que o mercado exagera, vem a urna e pune."
Num momento em que a crise, tanto nos Estados Unidos quanto na zona do Euro, leva pensadores e movimentos sociais a questionar o regime capitalista e a prever seu fim, o ex-ministro não crê em alternativas.
"O capitalismo não foi inventado por ninguém. O homem foi procurando formas de produzir sua sobrevivência da maneira mais econômica possível. O capitalismo não tem fim. De vez em quando ele quebra, se recupera e sai da crise diferente de como entrou. O que se chama de capitalismo, portanto, nunca é a mesma coisa." E conclui: "Cada vez que um cérebro peregrino inventa uma nova forma de organização, termina em porcaria".
A crise europeia entra na conversa.
"Ah, essa crise, na minha opinião, vai confirmar a nossa teoria. Ou a Europa se salva como uma federação ou vai voltar para a barbárie." Na hipótese de destruição do euro, o futuro da Europa é sombrio. Se isso ocorrer, o que não acredita, "esses países todos daqui a 20 anos vão fazer uma guerra".
Haveria o risco de a Europa estar caminhando para uma fase pré-Tratado de Versalhes?
O então presidente Lula, em campanha para a reeleição, em 2006.
"Se você permitir o desastre, tá tudo perdido! Não posso pedir para o grego: descoma o que você comeu. Não tem como! E você precisa do processo democrático para aperfeiçoar esse sistema. Ele não será aperfeiçoado na marra, a não ser que apareça um Napoleão, ocupe todos os 17 Estados e ponha ordem na casa. Aí, na Itália também vai aparecer um Mussolinizinho...."
Akihiro Ikeda e Gustavo Silveira participam do encontro com o Valor. Ikeda é economista e ex-aluno de Delfim e de Mário Henrique Simonsen. Ambos acompanham o ex-ministro há quatro décadas. Silveira começou como assessor de comunicação em 1967, quando foi com Delfim para a Fazenda, no Rio. Ikeda incorporou-se ao grupo pouco depois. Formou-se, ali, o que os cariocas chamavam de "Delfim boys". Eram todos ex-alunos: Affonso Celso Pastore, Paulo Yokota, Milton Dallari, Eduardo de Carvalho, Flávio Pécora, Carlos Antônio Rocca, Carlos Viacava, Carlos Alberto Andrade Pinto, Nelson Mortada, dentre outros.
De novo, Delfim se reporta ao momento em que desembarcou com seus ex-alunos no Rio, em 1967. "No Rio, era o seguinte: chegou esse gordo, italiano e vesgo. Nós vamos matá-lo em seis meses, tá certo? E além de tudo tem uns animais estranhos com ele, uns japoneses." Por anos e até hoje ainda se fala nos "Delfim boys", em referência àquele grupo e a outros nomes que foram se incorporando. Ikeda, Yokota e Gustavo trabalham com o ex-ministro na Ideias.
Seguimos, Delfim, Ikeda e a repórter para o almoço. O maître da cantina Roma, Luís, o mesmo que serve o ex-ministro há 26 anos, já o aguardava.
"Você tem uma truta bonita aí?", pergunta. Luís confirma e explica que o prato que Delfim pede não está no cardápio. É uma truta cozida, levemente temperada no sal, azeite, cebola, pimentão e louro. Acompanha espinafre ao vapor. De entrada, grão de bico e champignon.
Após participar de dois governos militares e patrocinar o "milagre econômico" - período em que as taxas de
crescimento da economia brasileira eram exuberantes - ele volta para São Paulo e para a USP, com planos para uma carreira política. Em 1975, um ano após a posse do general Ernesto Geisel na Presidência da República (1974-1979), Delfim é enviado a Paris onde, por três anos, assume o comando da embaixada brasileira. O exílio concebido por Geisel tinha como propósito abortar a pretensão do ex-ministro de candidatar-se ao governo de São Paulo e vir a ser, eventualmente, candidato à Presidência da República.
Delfim aceita uma pitaya mexicana na sobremesa: "Seja lá o que for, vamos lá, vamos comer!".
São desse tempo as primeiras notícias sobre a existência do "Relatório Saraiva", documento a que ninguém nunca teve acesso. Nele, o coronel Raimundo Saraiva, então adido militar em Paris, fazia uma série de denúncias de corrupção, como a cobrança de comissões sobre empréstimos de bancos franceses pela embaixada então chefiada por Delfim. O coronel Saraiva mandou para a 2ª Seção do Estado-Maior do Exército um informe dizendo que Delfim teria ligações com o irmão do presidente da França, Giscard D'Estaing, e que estaria recebendo 10% de comissão pelos financiamentos obtidos junto a bancos franceses. Tal relatório nunca foi divulgado e o assunto morreu de inanição.
O que era o relatório Saraiva?.
"Na verdade, era um bando de mentiras. Simplesmente, fogo amigo. Dizia que nós tínhamos recebido comissão."
Delfim acredita que esse documento foi obra dos militares da linha dura. "Se eles tivessem tomado o poder, ia ser muito pior do que se o partido comunista tivesse tomado o poder. Ia ser uma Cuba ainda mais subdesenvolvida. Havia uma luta interna no Exército. O Exército era como o PT. São grupos antropófagos. Quando você põe um em presença do outro, você tem uma vantagem: um come o outro."
O coronel Mário Andreazza, ministro do Interior e tocador de obras do porte da ponte Rio-Niterói e da Transamazônica, contemporâneo de Delfim no governo militar e amigo, ganhou fama de corrupto também por obra dessa facção do Exército, que não queria vê-lo candidato à Presidência, comenta Delfim.
"Vou lhe dizer, o Andreazza morreu em São Paulo. Uns amigos se cotizaram pra poder mandar o corpo num aviãozinho para o Rio. Diziam o diabo do Andreazza. Ele tinha um apartamento, que a mulher dividia com os filhos, e isso é tudo que eles têm. Diziam que o filho do Costa e Silva tinha feito a negociação de compra dos "Mirage" e recebido comissão, tá certo? Foi morar com a mãe. O grande problema é que essas coisas caminham, e você só fica sabendo a verdade 10 anos, 20 anos depois. Sei até dos filhos do Médici (general Emílio Garrastazu Médici, ex-presidente). Um morreu e o outro é professor aposentado pela UFRJ".
Era um mundo diferente, diz. "Eles tinham uma noção clara do dever. Por que nunca nenhum deles ficou um dia a mais? Você acha que o Médici, com a popularidade que adquiriu no final, se quisesse ficar mais 4 anos não teria ficado? Só que não, foi uma missão, a missão terminava no dia tal e ele foi embora."
Em 1979, Delfim volta para o governo como ministro da Agricultura da gestão Figueiredo. Embora tenha ficado para a história que ele derrubou Mário Henrique Simonsen do Ministério da Economia (na época, Fazenda e Planejamento se juntaram numa única pasta), para assumir o comando da economia, sua versão é outra. "A despeito de tudo que dizem, o Mário foi um grande amigo meu. Ele era uma figura muito interessante. Um gênio."
Sobre a crise: "Ou a Europa se salva como uma federação ou vai voltar para a barbárie".
Paul Volcker foi indicado para o comando do Federal Reserve (Fed), o Banco Central americano, em meados de 1979. Simonsen conhecia Volcker. Ambos haviam trabalhado no Citibank.
Delfim conta: "Um dia, entrei na sala do Mário e ele me disse: 'Quebramos, Delfim! Quebramos! Eu conheço o Volcker e onde ele vai pôr a taxa de juros ninguém sabe!', Com a dívida que fizemos no governo Geisel.... não temos como pagar."
Simonsen pediu demissão no dia 10 de agosto de 1979 sem fechar a proposta de lei orçamentária para o ano seguinte, que tinha que ser encaminhada ao Congresso até o dia 31.
"O Figueiredo adorava o Mário! Figueiredo só enlouqueceu quando soube, cinco minutos antes (do pedido de demissão), que ele já tinha feito a mudança." Simonsen embarca para o Rio e no dia seguinte vai à praia de Copacabana. Sua foto de calção de banho é estampada nas capas dos jornais cariocas.
"O Figueiredo viu o Mário em Copacabana tomando banho e o negócio pegando fogo. Ele ficou bravo porque se sentiu traído."
O temor de Simonsen se confirma. Em outubro daquele mesmo ano, Volcker começou a multiplicar os juros nos Estados Unidos, que de 3% chegaram a 20% em 1981. O aperto monetário feito para desinflacionar a economia americana, associado ao segundo choque do petróleo, deu início a uma quebradeira geral no mundo em desenvolvimento, inclusive no Brasil. Coube a Delfim gerir a massa falida.
O Brasil ficou freguês do Fundo Monetário Internacional. "O Brasil foi 16 vezes ao FMI. Acho, não sei, perdi ideia de conta, mas acho que fomos 16 vezes ao Fundo desde Juscelino (JK). Nós aprendemos tudo." JK rompeu com o Fundo depois que o acordo tinha sido assinado."
Outro grande amigo, diz, foi Roberto Campos.
"O Campos sempre foi um sujeito formidável, eu adorava ele. Mas o Costa e Silva tinha uma diferença muito séria com ele. Dizem, eu não sei se é verdade, que, quando o Costa e Silva era ministro do Exército, o Campos, ministro do Planejamento, deu um chá de cadeira nele. Depois Costa e Silva virou presidente."
O Brasil estava numa recessão brutal nessa época, lembra Delfim. Para flexibilizar as políticas fiscal e monetária, porém, era preciso acabar com o curto período de independência do Banco Central, criado em 1964, e demitir o primeiro presidente da instituição, Dênio Nogueira.
"O Dênio era um sujeito muito competente, mas praticava uma política muito restritiva. Ele foi embora e o Rui Leme assumiu o lugar dele", recorda. É o fim do projeto de autonomia concebido para a autoridade monetária pelos ministros Roberto Campos e Otávio Gouvêa de Bulhões, no governo anterior, do general Humberto de Alencar Castelo Branco.
"Não acaba a autonomia. O que acaba é a independência, que era um negócio absurdo", diz Delfim. Campos ficou irritado com a exoneração de Dênio.
"Campos era uma figura inteligente, brilhante e briguenta. Mas o que ele queria, na verdade, era continuar mandando no Banco Central independente."
As histórias vão surgindo aos borbotões de uma mente privilegiada. "O Costa e Silva dizia: 'O Banco Central é independente de quem? É de mim, mas não do Campos, né?'"
Encerrado o governo Figueiredo e o período militar, em março de 1985, Delfim se candidata a deputado federal e em 1986 volta para Brasília. Seu nome, naquela época, era o terror da chamada esquerda brasileira. Ele conta hoje que entrava no elevador da Câmara, sozinho ou com Roberto Campos, que também era deputado, e as pessoas se retiravam, em repúdio.
"O pessoal do PT saía do elevador, achando que aquilo ia me incomodar. No primeiro mandato, estávamos eu e o Campos... Então, a gente se divertia muito."
Sua avaliação do PT é crítica:
"Na verdade, eles tinham uma ideia completamente falsa do que era o Brasil. Queriam fazer do Brasil uma grande Cuba. Coisa estranha é que o Lula nunca teve essa ideia. Lula sempre teve consciência clara de que, sem hierarquia na fábrica, nada funciona."
Delfim conheceu Lula em 1974. O advogado do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Almir Pazzianoto, amigo comum, sugeriu ao ex-ministro que conversasse com o sindicalista para explicar as consequências do primeiro choque do petróleo, de 1973, que acabaria com os anos do "milagre". Numa casa nos Jardins, da mãe do deputado Eduardo Suplicy, dona Filomena, ambos conversaram por uma hora e meia. Começou ali uma empatia que culminaria com o apoio de Delfim à candidatura de Lula à Presidência da República, em 2002. Hoje se visitam com frequência.
Delfim votou em Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, conforme já declarou no passado. O confisco promovido então "não foi um ato de coragem, foi desespero", disse na ocasião. Mas não se arrepende. Collor abriu a economia, reduziu o tamanho do Estado e a dívida pública foi cortada em um terço. "Tudo isso, no final, propiciou o Real."
A concepção do Plano Real, que finalmente conseguiu derrubar a inflação, era brilhante, Delfim reconheceu por diversas vezes. Mas quando o país celebrava a existência de uma moeda que valia mais que o dólar, ele chamava a atenção para a crise de balanço de pagamentos que a sobrevalorização do real iria gerar. Enquanto Fernando Henrique Cardoso tomava posse como presidente da República, Delfim insistia que aquela política terminaria de forma melancólica.
Foram longos os anos ligados à USP e desse tempo ele fala com afeição.
"A universidade foi formada por um grande número de professores judeus que tinham sido expulsos da Itália, da Alemanha." A Faculdade de Economia e Administração (FEA) sempre foi uma escola aberta. "Ela nunca teve uma orientação precisa, digamos, neoclássica, keynesiana, marxista."
No início, os professores não eram nem economistas.
"Era todo mundo autodidata. O sujeito fingia que era economista e dava aula, tá certo?"
Assim como a FEA, Delfim também nunca se vinculou a uma escola de pensamento econômico.
"Nunca me liguei a nenhuma escola. Nunca. Primeiro, que eu realmente pretendia ver econometria, porque eu tinha certo domínio sobre ela. Mas passei a desacreditar desses instrumentos. Quando vejo alguém aplicar uma função de produção para determinar o crescimento do Brasil, acho uma coisa, no mínimo, engraçada."
Dos anos de estudo e prática, ele extraiu uma lição: "Não existe mercado sem Estado e não existe desenvolvimento sem mercado." O mercado, é claro, tem seus problemas e excessos. Mas o Estado também os tem. O melhor, segundo ele, é caminhar numa linha intermediária, e difícil: "Nem considerar a teoria econômica como uma religião, da qual o economista é portador, divulgador e defensor; nem achar que o Estado é onisciente e, portanto, não pode ser nem onipresente nem onipotente".
Delfim estava no segundo ano da faculdade quando adquiriu, numa livraria italiana, a obra do economista e político Constantino Bresciani-Turroni. " Era uma visão extraordinária, muito crítica do keynesianismo que eu nem conhecia direito. Aquilo foi uma revolução."
A verdadeira revolução ocorreria lá pelos anos 1949, 1950, com a chegada às livrarias do livro "Introdução à Análise Economia", de Paul Samuelson.
"O Samuelson fez a maior sacanagem com os economistas. A vida inteira ele promulgou que a economia era uma ciência. Antes de morrer, deixou um recado: 'A economia nunca foi uma ciência e nunca será'. E morreu!"
A memória está bem afiada. Delfim cita nomes de professores e debates de que participou na FEA, naquela época. O professor Paul Hugon, de economia política, ensinava que a moeda era qualquer coisa que servisse como unidade de conta, meio de pagamento e poder liberatório. "O Heraldo Barbuy, professor de matemática, germanófilo, dizia: 'Não é nada disso! Moeda é uma instituição social'".
E prossegue: "Na verdade, era um 'brainstorm'... As aulas dele [Barbuy] ocupavam o sábado de manhã inteiro, saía gente pela janela. Depois eu já tinha feito minha cátedra e fui seu examinador. Até hoje tenho uma saudade enorme dele".
O ex-ministro testemunhou todas as transformações importantes do país: a ditadura, os momentos de crise aguda, as diversas vezes em que o Brasil quebrou, a redemocratização, a hiperinflação, os problemas cambiais e a exacerbação da taxa de juros. A história da sua vida é a história do país em todos esses anos.
"Nunca trabalhei na minha vida. Tudo que fiz foi por diversão, por prazer", declara. " Vou lhe dizer mais: você não escolhe a profissão. A profissão te escolhe. E quando você tem sorte, você nunca trabalha".
Trabalho e diversão se fundiram numa só coisa, que se tornou para ele " uma forma de viver". Considera-se um sujeito de sorte e proclama, num raro momento em que fala sobre si mesmo: "Fui muito feliz, inclusive nos dois casamentos".
Viúvo, Delfim oficializou recentemente a união com Gervásia Diório, mãe de sua filha Fabiana.
Desde que perdeu a reeleição para deputado federal, em 2006, Delfim vai todos os dias ao escritório onde presta consultoria a empresas, escreve para diversos jornais e revistas e faz palestras. Os artigos são produzidos aos domingos, na máquina de escrever cinza Olympia, que tem há 40 anos. Antes de terminar o almoço com o Valor ele comenta que tem que voltar para o escritório e atender dois clientes.
Luís, o maître, se aproxima da mesa e Delfim pede: "Traz aquele carrinho aqui para a gente fazer uma tentação". São as sobremesas.
Após a temporada de dois meses no Incor, Delfim emagreceu 15 quilos, já plenamente repostos. "Perdi uma arroba e ganhei uma arroba", diz, rindo. Faz diariamente uma sessão de alongamento com um fisioterapeuta. "Ele sua pra burro e eu fico sentado."
Ele dá uma conferida nos doces, mas opta pelas frutas que Luís sugere.
"Como é que se chama esse negócio"?, pergunta.
"É pitaya mexicana", diz o maître.
"Seja lá o que Deus quiser, vamos lá, vamos comer!".
Luís traz tâmaras.
"Uma tâmara! Tá bonita, hein?, Acho que não vou perdoar."
"São israelenses", informa o maître.
Delfim diz à repórter: "Põe aí que eles importam essas frutas para eu poder comer todos os dias".
De tudo que viveu até agora, para Delfim foi a Constituinte de 1988 a responsável pela grande mudança que deu início ao Brasil de hoje.
"Com todos os seus problemas e suas utopias, a Constituição de 88, na verdade, foi construindo instituições que estão cada vez mais sólidas. Você tem um Executivo funcionando, tem um Legislativo funcionando e tem um Judiciário funcionando. Tem, ainda, uma coisa que não tem em nenhum outro país emergente, que é um Supremo Tribunal Federal independente, que defende as liberdades individuais e que frequentemente é criticado por tentar fazer justiça."
A Constituição, descreve ele, que foi deputado constituinte, tem três vetores: "Construir uma sociedade republicana em que todos, inclusive o poder incumbente, estejam sujeitos à mesma lei; construir uma sociedade democrática, em que estamos avançando numa velocidade espantosa; e uma sociedade razoavelmente justa".
"O capitalismo é uma corrida feroz, uma competição. Para a competição ser justa, a justiça se faz na saída. Então, todo mundo tem que sair daqui com os dois pés e uma cabeça, tá certo?" Independentemente de o sujeito ter nascido numa suíte presidencial do Hotel Waldorf Astória ou debaixo de uma ponte em Brasília, a carta lhe dá acesso à saúde e à educação. O resultado vai depender da sorte, do DNA e de uma porção de outras coisas. É isso que está implícito na Constituição, diz.
"Aparece um sujeito como o Lula e, intuitivamente, descobre que é isso mesmo que o povo quis por lá na Constituição", completa.
"Quantos votos tem o economista que diz que isso é besteira? Quantos? A mulher dele, provavelmente, não vota nele. Quem decidiu isso tem 50 milhões de votos. É um respeito à forma de organização. O que me parece é isto: Nós estamos nos aperfeiçoando."
- Ministro, o que o diverte hoje?
- Hoje eu me divirto vendo o Brasil melhorar.
- Sente algum incômodo, constrangimento, por ter participado dos governos militares?
- Me causa o incômodo natural que causa a todas as pessoas quando o Estado abusa do seu poder. Uma coisa fundamental é que sempre mantivemos o sistema da economia de mercado.
- Não lhe chegavam notícias dos porões do regime?
- Não! Há um equívoco completo nisso. Tinha uma divisão absolutamente total entre a política e a economia.
- Dizia-se, na época, que o senhor, assim como Simonsen, evitaram algumas prisões. É verdade?
- Quando ficávamos sabendo e podíamos interferir, nós interferíamos, é claro. A gente dava um depoimento a favor do sujeito.
"Não quero me isentar. Não quero me isentar. Eu, pessoalmente, nunca tive nenhum envolvimento em coisa nenhuma. Fiz a minha tarefa de economista. No regime autoritário, as pessoas não compreendem, não existia nenhuma ligação entre o pessoal militar e a administração. Nunca entrou no meu gabinete um oficial fardado. E os que eram militares e estavam no governo, como era o caso do Andreazza, eram civis discriminados pelos outros militares.
- Norberto Bobbio, no livro "De Senectute", fala que, com o passar dos anos, vamos perdendo a capacidade de assimilar o novo. O senhor sente isso?
- Ah, sem dúvida! Sem dúvida. Essa tecnologia moderna, o iPad, o Kindle, não sei o que mais, estou começando a aprender, mas tenho grande dificuldade. Ainda hoje é na Olympia [aquela máquina de escrever que o acompanha há mais de 40 anos], que comando meu pensamento.